domingo, 21 de março de 2010
Adiamento
Adiamento
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…
Esta espécie de alma…
Só depois de amanhã…
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã…
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital…
Mas por um edital de amanhã…
Hoje quero dormir, redigirei amanhã…
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…
Antes, não…
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã…
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…
Sim, talvez só depois de amanhã…
O porvir…
Sim, o porvir…
Solução Editora, I, Lisboa, 1929
Álvaro de Campos
14-4-1928
sábado, 20 de março de 2010
Dia do pai
Dia do pai
Fui educada na ideia de que, tudo aquilo que eu fizesse, por mais singelo e modesto que fosse, tinha muito mais valor e importância do que qualquer outra coisa, vistosa, linda de encher o olho, mas comprada numa qualquer loja, por melhor que ela fosse, o que era corroborado pelo regozijo demonstrado pelos meus pais, quando abriam os meus presentes, feitos de propósito para estes dias. Claro que, paralelamente, apareciam outros, mas que funcionavam mais como um complemento às verdadeiras estrelas do dia: As minhas obras de arte...
Há uns tempos, encontrei algumas dessas” peças “em casa da minha mãe e uma delas em particular fez-me sorrir. Na altura eu andava a ser iniciada” nos bordados” e lembrei-me de fazer uma quadra, para o meu pai. A minha mãe, pessoa metódica e organizada, disse-me que tínhamos de comprar o tecido, as linhas, pensar nas cores, no desenho, na quadra, passar com químico para o tecido … e só depois pôr mãos à obra. Um verdadeiro tormento! Para mim, a coisa era pensada e logo executada! Demorar um dia que fosse … era uma eternidade, um suplício! Tinha tido a ideia, queria executa-la prontamente e ver o resultado, sem mais demoras. Tudo o resto podia esperar! Claro que para a minha mãe havia outras prioridades, que não se compraziam com a satisfação destes meus ataques criativos… Por isso resolvi improvisar… Se não tinha tecido… Tinha papel… Linhas podia usar as do paninho que estava a bordar… Só faltava a quadra… mas o frenesim de experimentar era tanto, que nem conseguia pensar… dei voltas à cabeça, e mais voltas…até que tive outra ideia brilhante… já que estava a improvisar, porque não adaptar? Era só mudar uma palavrinha e tudo se compunha na perfeição!
Escrevi a quadra numa folha de papel, fiz uma florzinha amarela, com duas folhinhas verdes, peguei numa agulha e atirei-me ao trabalho. A coisa não foi tão fácil como parecia…. O papel não ajudava, os furos feitos pela agulha eram grandes, a linha tinha de ser puxada muito devagarinho para não rasgar… Terminei e contemplei com orgulho o resultado. Estava de se lhe tirar o chapéu! A flor amarela, e em azul, a quadra, com os pontos de exclamação no fim e tudo:
Com três letrinhas apenas
Se escreve a palavra pai
É das palavras mais pequenas
A maior que o mundo tem!!!
Foi uma das coisas que fiz com mais sucesso, mostrada a toda a família, embora a certa altura tenha começado a surgir em mim, uma certa duvida sobre o que gostariam mais… se do bordado, se da quadra…
O meu pai, esse, adorou.
domingo, 7 de março de 2010
sábado, 6 de março de 2010
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