segunda-feira, 25 de outubro de 2010


Gostava que chovesse…
Uma enxurrada imensa, que tudo arrastasse.
Quem dera pudesse também arrastar esta agrura…  
Que o vento e as águas da chuva me purificassem…
Quando chover, rumarei ao Guincho,
Despirei-me de tudo  e ficarei,
No meio do areal, nua,
À espera,
Braços abertos….
À mercê da intempérie, dos elementos,
Dos Deuses dos Céus...
Não entoarei nenhuma prece, nada …
Ficarei, como agora…
Só.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Bom tempo

O marasmo continua. Parece ser um ciclo fechado, que tende a perpetuar-se.
 O tempo está bom … Sol, temperaturas amenas, mas mesmo assim, esta sensação de fastio, de enfartamento parece não me deixar.
 Nada do que me dizem me agrada ou alegra verdadeiramente. Vou passando os dias, devagar, tagarelando, lançando aqui e ali umas piadas idiotas, que lamento, mal acabo de proferir, sorrio muito, continuo por aqui, sempre, mas não da mesma forma.
Aos que me sentem diferente, digo que não sei porquê… Mas o certo é que sei.
 Ontem estive com ela, com uma das muitas outras partes de mim. Era algo que eu já não recordava. A sensação de interiormente lhe tocar e por ela ser tocada é indescritível. Não recordo o que se disse, mas não esqueço o palpitar, o frenesim que me toma, cada vez que a vejo. Não sei bem como o explicar, o que não deixa de ser estranho em mim, pessoa para quem,  ( farto-me de o dizer) , as imagens não substituem as palavras.
 Sei que nunca nos poderemos juntar. Não faria sentido. Nascemos num tempo errado desta vez. Só o facto de a reencontrar já pode por si só ser considerada uma benesse dos céus…
Não há muito mais a pensar, ou a dizer. No entanto, dou comigo de peito apertado e coração descompassado a pensar em mim -  porque é de  uma parte de mim que se trata -  presa à perda de não me ter, dormente, desconfortável.
Mas o tempo está bom… o sol brilha, as temperaturas estão suaves para a época…
Laisser passer...

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Childhood revisited

And there I went to the deeps of my soul. Squadron on open fields, leading to nowhere.  Through mirrors hanging on  the  memories of my childhood, stayed  the  echoes  of  who I might have been,  if I had followed  one of the other paths … and there were so many… endless. You were there,  floating on the seas of lost memories, all mixed up between reality and fantasy. I tried  to reach out for you. 
Another time. I hope...

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Soneto quase inédito



        
 Surge Janeiro frio e pardacento,
Descem da serra os lobos ao povoado;
Assentam-se os fantoches em São Bento
E o Decreto da fome é publicado.

Edita-se a novela do Orçamento;
Cresce a miséria ao povo amordaçado;
Mas os biltres do novo parlamento
Usufruem seis contos de ordenado.

E enquanto à fome o povo se estiola,
Certo santo pupilo de Loyola,
Mistura de judeu e de vilão,

Também faz o pequeno "sacrifício"
De trinta contos - só! - por seu ofício
Receber, a bem dele... e da nação.
  
 
  
 
JOSÉ RÉGIO Soneto escrito em 1969.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Da janela do meu quarto


    Ontem passaste devagar à minha porta. Vi-te por entre as cortinas da janela do quarto. Nem levantaste os olhos do chão. Caminhavas devagar, passada ritmada, como de costume. Passas sempre à mesma hora: 14.35.
De onde vens, não faço ideia. E sinceramente nem quero saber. Apenas gosto de te ver, cá do alto do meu quarto, a passar.
   Invento histórias para ti… umas vezes és um médico, exausto, acabado de sair de uma operação complicada, que vem do hospital ( o hospital fica lá para os lados de onde tu vens), outras um advogado que acabou de salvar um inocente da forca, (eu sei que não se mata ninguém,muito menos na forca, mas que vem isso ao caso?), outras um espião que vai salvar a nação.  Às vezes, imagino que és apenas um homem. Só. Que procura encontrar numa das janelas desta rua, a janela verde, de cortinas às bolinhas brancas, onde eu estarei. Um dia ao passares, olharás com mais atenção, para a ponta da cortina que se levanta e …
 Hoje, enchi-me de coragem e saí antes da tua hora, só para me cruzar contigo, para ver o que fazias, se levantavas os olhos e me olhavas, ou se continuavas, perdido para mim.
Olhavas para as montras, sem as ver. Passei por ti, tornei-me ousada, e o meu ombro roçou o teu braço, a minha mão a tua mão, como quem nada quer. Senti-me a estremecer, até corei e sem aguentar mais, apressei o passo, alcancei a escada do prédio, subi as escadas três a três, corri para a janela, ainda a tempo de te ver chegar ao pé da Magnólia branca e desaparecer.
Deixei-me escorregar e fiquei sentada no chão do quarto, encostada à janela, onde ainda pairavam pedaços teus. 
    Amanhã passarás outra vez, devagar à minha porta, mas eu...eu que antes te imaginava e inventava enredos, já não o posso fazer. Perdi-me nos teus olhos e fiquei aí, no meio de ti.

sábado, 2 de outubro de 2010

O inadmissível, o possível e o desejável....

Faz hoje três dias que te levaram.
Ontem, num impulso, procurei o número, peguei no telefone e liguei. Do outro lado, uma voz indiferente atendeu. Perguntei por ti. Disseram-me que inexplicavelmente estavas bem. E agradeceram-me a preocupação.
Como se pode agradecer a preocupação ... -  foi algo que me ocorreu. Já a finalizar o telefonema acrescentaram ainda que " eles precisavam que alguém se lembrasse deles", outra expressão que só serviu para aumentar aquela sensação de enjoo que se tinha instalado em mim.
Há três dias, o teu pai deixou-te na escola. Provavelmente já estava à espera de alguma coisa. Foste para a fila, subiste as escadas no meio da algazarra da primeira hora da manhã, tiraste os cadernos da mochila e estavas já a passar o sumário, quando eu apareci. Com voz firme e segura, chamei o teu nome. Quase desabei quando te levantaste, arrumaste tudo,  livros, caneta, borracha, os cacos do meu coração e saíste comigo.
- É inadmissível- disseram. Não podias continuar assim. Não daquela forma. Não assim.
No bar da escola dei-te o pequeno-almoço e perguntei-me como seria possível…
- É possível- disseram-me lá do fundo de ti os teus olhos, sempre secos e tristes.
- É possível … e só desejava continuar aqui….
As assistentes nem as ouvi… sei que balbuciaram qualquer coisa sem a menor importância para o caso, de circunstância. Pensei que mais valia não dizerem nada.
E agradeceram…
Inadmissível.
Só possível aqui. 
Desejável… nunca ter acontecido.
Faz hoje três dias que te levaram...
E eu continuo  aqui, a pensar em ti.

Para o André