sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Natal


   O Natal era sempre uma das épocas mais desejadas lá em casa.
 Os preparativos iniciavam-se, na boa tradição lusa no dia oito de Dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição.
 O presépio, de figuras de barro pintado, tinha lugar de destaque, descansando em cima de um manto de musgo apanhado na serra.
 A minha mãe fazia questão de ter um rebanho imenso de ovelhazinhas, quase todas em diferentes posições, acompanhadas por pastores. Havia também uma ponte e um lago de prata, com patinhos. No centro, para onde todas as personagens se dirigiam estava a cabana do Menino Jesus, ladeado por José, Maria, o burrinho e a vaca. Tudo era feito ao pormenor, com a minha ajuda. Ao longe os Reis Magos perscrutavam o horizonte, em busca da estrela, pendurada na cabana do menino. Eu imaginava as peripécias da viagem, e acrescentava sempre um pormenor ou outro… uns leões, porque tinha de haver leões no meio da travessia, uns crocodilos no lago, porque os patos tinham de passar por alguma provação e claro está, lobos, atendendo ao tamanho do rebanho. Infelizmente o resto da família não se comprazia com estas inovações, que após grande risota eram retiradas, independentemente dos meus protestos.
A árvore de Natal era outra das “ Estrelas”, cheia de figurinhas, bolas e grinaldas, que passávamos horas a enrolar, pôr e dispor. Confesso que não me atraia tanto como o presépio. Para mim não passava de um pinheiro. Mas a sua escolha era uma verdadeira arte. Lembro-me que o meu pai, encarregue da compra, passava horas naquilo. Hoje, acho que seria algo só comparável à poda de um bonsai… tinha de se imaginar um pinheiro manso, aparentemente sem graça, com ar desgraçado e infeliz, enfeitado, cheio de bolinhas de todas as cores, grinaldas, fitas e luzes a acender e a apagar, e tudo isso já na sala.
- O que te parece este Olguinha? Olha, aquele também não está nada mal… Hummm… demasiado aberto… E aquele? O que achas daquele…Não sei… Está assim… meio para …  
 Eu fazia um sorriso amarelo. Bem me esforçava, mas achava-os a todos sem graça. A minha visão do pinheiro ideal estava a milhas dali, daquela espécie de feira, ao pé da Avenida Estados Unidos da América. O que eu queria mesmo, mesmo, era um daqueles lindos pinheiros nórdicos, de ramas para cima, como se via nos filmes, nem que fosse artificial… Mas a hipótese nem se punha. Para além de serem caríssimos, os meus pais eram tradicionalistas. O nosso país é Portugal, e em Portugal não há pinheiros nórdicos. Ponto final.
Ao fim do que parecia uma eternidade, o meu pai lá chegava a casa, carregando o pobre pinheiro, orgulhoso, mas temeroso. Após a epopeia da compra, tinha de passar pela prova real: a aprovação da minha mãe, que como é óbvio, acabava sempre por torcer o nariz, nem que fosse às escondidas… A visão claramente vista, a reluzir e arduamente conquistada, era do meu pai, não dela!
Seguia-se a fase da compra das prendas. Sim. Comprávamos presentes para familiares e amigos, mas é claro que as minhas prendas vinham pela chaminé, onde eu deixava o sapatinho. Era o próprio Menino Jesus que se encarregava da distribuição…
Foi assim, até ao dia em que eu, já desconfiada, voltei atrás, depois de a minha mãe me ter mandado expressamente descer para o carro, para ao pé do meu pai. Esse Natal seria passado em casa do meu tio, com os meus avós. Entrei na cozinha ainda a tempo de a ver a tentar esconder um dos presentes. Lembro-me de ter ficado numa amálgama de sensações contraditórias: se por um lado me sentia satisfeita – afinal, o Menino Jesus não deixava presentes na chaminé, eram mesmos os pais que os colocavam lá, por outro não podia deixar de sentir uma certa desilusão…
A verdade é que quando regressei à escola, depois das férias, e ouvi as descrições da noite de consoada, a chegada do menino Jesus eu me sentia maior e mais importante. Eu sabia. E nada podia mudar isso mesmo.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010



Procurei uma nuvem, dentro da minha cabeça e escondi-me lá.
Como não bastava, criei um banco de nevoeiro.
Levei o dia assim, umas vezes pairando, outras flutuando, cinzenta, sombria, desbotada.
Não bastou.
Bom seria poder sair de mim, nem que fora por um momento e poder tocar-te, abraçar-te, chamar-te à razão,
Entrar por uma nesga desse pedaço de tempo, por onde andas,
Voltar atrás…
Chamar-te…
Contar-te o como seria …será… é…Foi.
Pegar uma volta sob a volta e defraudar o tempo.
Foi-se a nuvem, o nevoeiro, todas as almofadas fofas que me protegiam,
E eu caí.
 Hoje foi assim.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Dia cinzento



  Todos os dias aparecem pedras no nosso caminho, umas que cuidadosamente colocamos e zelamos para que de lá não saiam, outras que a vida se encarrega de proporcionar.
   Choramos, rezamos, deitamos contas à vida, rimos, odiamos, amamos, mas no final... no final, feitas as contas, nada sobra, a não ser o nó na garganta, o sabor amargo da perda e apesar de tudo a certeza de que valeu a pena ter vivido.
  Entro na capela. As pessoas distribuem-se em pequenos grupos, conversando em voz baixa,mão dentro do casaco, provavelmente a segurar o telemóvel, não vá alguém telefonar... outros ficam à porta. Inspiro o ar fresco da noite em grandes golfadas, mas custa-me respirar até ao fim; O laço parece ter-se apertado ainda mais. Reflexos de recordações espartilhadas, serpenteiam à minha volta, desconexas, envolvendo-me num transe deprimente,  quase  viciante, do qual tenho dificuldade em me soltar. Oiço conversas soltas à minha volta..." Assim é que se vê, o que valemos..."..." Esta vida não vale nada.."..
 Sinto-me vazia de tão cheia.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Always look at the bright sight of life


O rádio entoa as mesmas melodias de sempre. Deixo-o cantarolar, abstraio-me dos sons e tento concentrar-me. Pela minha cabeça pairam ainda ecos, do que foi o dia de hoje. Episódios espartilhados vão desfilando, um a um desconexos. Avalio cada um deles, tentando retirar o melhor do pior.
“ Always look at the bright sight of life”mesmo que este não seja inteligível à partida e a maioria das vezes não o é. Foi para este pensamento que em bicos dos pés, me tentei esticar o mais que pude, nas últimas horas, na tentativa de o agarrar e ficar ali, pendurada no alento, naquilo que me parecia ser na altura um mar de desolação.  
- Vamos fazer o que ainda não foi feito – grita o Pedro Abrunhosa –  não posso deixar de pensar se ainda existirá alguma coisa por fazer... Pelo menos digna de interesse ou de nota.  Regresso ao trabalho, ainda a tempo de ouvir os acordes finais do refrão :
-Porque amanhã pode ser tarde demais…

segunda-feira, 25 de outubro de 2010


Gostava que chovesse…
Uma enxurrada imensa, que tudo arrastasse.
Quem dera pudesse também arrastar esta agrura…  
Que o vento e as águas da chuva me purificassem…
Quando chover, rumarei ao Guincho,
Despirei-me de tudo  e ficarei,
No meio do areal, nua,
À espera,
Braços abertos….
À mercê da intempérie, dos elementos,
Dos Deuses dos Céus...
Não entoarei nenhuma prece, nada …
Ficarei, como agora…
Só.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Bom tempo

O marasmo continua. Parece ser um ciclo fechado, que tende a perpetuar-se.
 O tempo está bom … Sol, temperaturas amenas, mas mesmo assim, esta sensação de fastio, de enfartamento parece não me deixar.
 Nada do que me dizem me agrada ou alegra verdadeiramente. Vou passando os dias, devagar, tagarelando, lançando aqui e ali umas piadas idiotas, que lamento, mal acabo de proferir, sorrio muito, continuo por aqui, sempre, mas não da mesma forma.
Aos que me sentem diferente, digo que não sei porquê… Mas o certo é que sei.
 Ontem estive com ela, com uma das muitas outras partes de mim. Era algo que eu já não recordava. A sensação de interiormente lhe tocar e por ela ser tocada é indescritível. Não recordo o que se disse, mas não esqueço o palpitar, o frenesim que me toma, cada vez que a vejo. Não sei bem como o explicar, o que não deixa de ser estranho em mim, pessoa para quem,  ( farto-me de o dizer) , as imagens não substituem as palavras.
 Sei que nunca nos poderemos juntar. Não faria sentido. Nascemos num tempo errado desta vez. Só o facto de a reencontrar já pode por si só ser considerada uma benesse dos céus…
Não há muito mais a pensar, ou a dizer. No entanto, dou comigo de peito apertado e coração descompassado a pensar em mim -  porque é de  uma parte de mim que se trata -  presa à perda de não me ter, dormente, desconfortável.
Mas o tempo está bom… o sol brilha, as temperaturas estão suaves para a época…
Laisser passer...

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Childhood revisited

And there I went to the deeps of my soul. Squadron on open fields, leading to nowhere.  Through mirrors hanging on  the  memories of my childhood, stayed  the  echoes  of  who I might have been,  if I had followed  one of the other paths … and there were so many… endless. You were there,  floating on the seas of lost memories, all mixed up between reality and fantasy. I tried  to reach out for you. 
Another time. I hope...

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Soneto quase inédito



        
 Surge Janeiro frio e pardacento,
Descem da serra os lobos ao povoado;
Assentam-se os fantoches em São Bento
E o Decreto da fome é publicado.

Edita-se a novela do Orçamento;
Cresce a miséria ao povo amordaçado;
Mas os biltres do novo parlamento
Usufruem seis contos de ordenado.

E enquanto à fome o povo se estiola,
Certo santo pupilo de Loyola,
Mistura de judeu e de vilão,

Também faz o pequeno "sacrifício"
De trinta contos - só! - por seu ofício
Receber, a bem dele... e da nação.
  
 
  
 
JOSÉ RÉGIO Soneto escrito em 1969.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Da janela do meu quarto


    Ontem passaste devagar à minha porta. Vi-te por entre as cortinas da janela do quarto. Nem levantaste os olhos do chão. Caminhavas devagar, passada ritmada, como de costume. Passas sempre à mesma hora: 14.35.
De onde vens, não faço ideia. E sinceramente nem quero saber. Apenas gosto de te ver, cá do alto do meu quarto, a passar.
   Invento histórias para ti… umas vezes és um médico, exausto, acabado de sair de uma operação complicada, que vem do hospital ( o hospital fica lá para os lados de onde tu vens), outras um advogado que acabou de salvar um inocente da forca, (eu sei que não se mata ninguém,muito menos na forca, mas que vem isso ao caso?), outras um espião que vai salvar a nação.  Às vezes, imagino que és apenas um homem. Só. Que procura encontrar numa das janelas desta rua, a janela verde, de cortinas às bolinhas brancas, onde eu estarei. Um dia ao passares, olharás com mais atenção, para a ponta da cortina que se levanta e …
 Hoje, enchi-me de coragem e saí antes da tua hora, só para me cruzar contigo, para ver o que fazias, se levantavas os olhos e me olhavas, ou se continuavas, perdido para mim.
Olhavas para as montras, sem as ver. Passei por ti, tornei-me ousada, e o meu ombro roçou o teu braço, a minha mão a tua mão, como quem nada quer. Senti-me a estremecer, até corei e sem aguentar mais, apressei o passo, alcancei a escada do prédio, subi as escadas três a três, corri para a janela, ainda a tempo de te ver chegar ao pé da Magnólia branca e desaparecer.
Deixei-me escorregar e fiquei sentada no chão do quarto, encostada à janela, onde ainda pairavam pedaços teus. 
    Amanhã passarás outra vez, devagar à minha porta, mas eu...eu que antes te imaginava e inventava enredos, já não o posso fazer. Perdi-me nos teus olhos e fiquei aí, no meio de ti.

sábado, 2 de outubro de 2010

O inadmissível, o possível e o desejável....

Faz hoje três dias que te levaram.
Ontem, num impulso, procurei o número, peguei no telefone e liguei. Do outro lado, uma voz indiferente atendeu. Perguntei por ti. Disseram-me que inexplicavelmente estavas bem. E agradeceram-me a preocupação.
Como se pode agradecer a preocupação ... -  foi algo que me ocorreu. Já a finalizar o telefonema acrescentaram ainda que " eles precisavam que alguém se lembrasse deles", outra expressão que só serviu para aumentar aquela sensação de enjoo que se tinha instalado em mim.
Há três dias, o teu pai deixou-te na escola. Provavelmente já estava à espera de alguma coisa. Foste para a fila, subiste as escadas no meio da algazarra da primeira hora da manhã, tiraste os cadernos da mochila e estavas já a passar o sumário, quando eu apareci. Com voz firme e segura, chamei o teu nome. Quase desabei quando te levantaste, arrumaste tudo,  livros, caneta, borracha, os cacos do meu coração e saíste comigo.
- É inadmissível- disseram. Não podias continuar assim. Não daquela forma. Não assim.
No bar da escola dei-te o pequeno-almoço e perguntei-me como seria possível…
- É possível- disseram-me lá do fundo de ti os teus olhos, sempre secos e tristes.
- É possível … e só desejava continuar aqui….
As assistentes nem as ouvi… sei que balbuciaram qualquer coisa sem a menor importância para o caso, de circunstância. Pensei que mais valia não dizerem nada.
E agradeceram…
Inadmissível.
Só possível aqui. 
Desejável… nunca ter acontecido.
Faz hoje três dias que te levaram...
E eu continuo  aqui, a pensar em ti.

Para o André

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Estrela do mar

A estrela-do-mar enamorou-se. Todos os dias, agarrada à sua rocha preferida, ela o via, de soslaio. Tentava ignora-lo, mas em vão. Concentrava-se na força da maré, na suave carícia do vaivém das ondas, na busca por comida … na sua respiração. Simulava movimentos desequilibrados e desconcentrados, calculados, pensados… sempre na mira dele, que lá do alto a observava, vigilante, omnipresente. Um braço aqui… o outro ali… como quem quer, mas não quer. Devagar, deslizava, contorcia-se por entre fendas minúsculas, desaparecia, para voltar a surgir, resplandecente. Às vezes mudava de cor, de um amarelo-torrado para um laranja forte e vivo… achava ela que era para o seduzir, mas não passava de um reflexo do seu embaraço, quando sem querer o encarava.
Como poderia uma estrela-do-mar, (até porque dizem os entendidos, na sua ignorância, que as estrelas-do-mar não pensam, nem têm cérebro), como poderia ela, todos os dias deixar de sentir a sua presença, o calor dos seus braços, a luz forte e penetrante do seu olhar. Como pode uma estrela-do-mar, que não passa disso mesmo - estrela-do-mar, comezinha, simples, linear, ser capaz de sair de si mesma e ascender à superfície, tomar para si algo que não era seu, mas que parecia ter feito desde sempre parte dela.
De tudo isto, a estrela nada sabia… Mas interrogava-se. Ela era o mar. O seu prolongamento. Misturavam-se numa mesma amálgama. Esta tinha sido sempre a sua realidade. Não conhecia mais nada. Até ter reparado nele.
O seu brilho, hipnotizava-a, tirava-a dos seus sentidos, enlouquecia-a.  Esquecia-se de si, soltava-se e quando acordava estava à deriva, em águas salgadas, de sabor doce, tão leve se sentia ela. Num desses devaneios, foi-se deixando estar… a maré foi vazando, ele foi chegando, devagar, sem pressas, como era seu costume…e ela, foi ficando, ficando… esmiuçando um movimento de partida, mas ficando.  O Sol tinha atingido o zénite. E reinava, senhor e rei. A estrela sorria, à medida que ia secando e a água se ia esgotando, encarquilhando sob o calor abrasador do meio-dia. Já não era a Estrela do Mar. Tinha voltado a ser o que sempre fora sem o saber. Estrela. Só Estrela.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Deixa-me entrar

Diz-me, vá lá, diz…
Diz-me no que estás a pensar…
Diz-me o que tens, que me baralha a atenção.
Diz..
Vá lá..
Diz-me lá…
Diz,
Porque passeias por aqui e por acolá,
Quando eu te queria por aqui…
Junto! Ao pé de mim…
Abre-me as portas do teu olhar..
Deixa-me entrar, subir as escadas doiradas de caracol…
Passar o labirinto de cristal…
O oceano das estrelas e do Sol..
O céu das nuvens doces …
Diz-me…
Vá lá…
Faz da tua porta a minha porta…
E deixa-me entrar..
Eu estou aqui..

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Hoje




 Hoje...
 Hoje sinto vontade de escrever. 
Não sei propriamente o porquê, ou sobre o quê…
Apenas sei que tenho de o fazer. A maior parte das vezes, os meus dedos vogam pelas teclas, ao seu ritmo. Eu limito-me a emprestar-lhes o movimento.
Mas não hoje… hoje pairam por aqui… indecisos, ora para cá, ora para lá… escrevendo e apagando, apagando e escrevendo, sem saber bem porquê, ou o quê…
Se por um lado permanecem palavras, unas, arrogantes, inflexíveis., por outro parecem preguiçosas, e espreguiçam-se, como gatos, prazenteiras,tentando escapulir-se pelo caminho, amuadas, mimadas.  
Mas hoje tenho de escrever…  
Estranha esta vontade. Estranha esta indecisão.  
Porquê escrever… se não tenho o como, ou o porquê…




terça-feira, 13 de julho de 2010

Por onde andas?




Onde estarás tu, que não te encontro…
Procurei-te já por todos os recantos, mas não te vejo… não oiço aquelas gargalhadas que te costumavam anunciar, nem os teus passos lestos e despreocupados.
Por onde andas? Fui até ao mar e não te vi, nem no azul, nem na espuma das ondas. As gaivotas esvoaçavam, de olhar frio e despreocupado, um olho no mar, outro na esplanada, prontas para apanhar o que aparecesse, peixe, ou restos de comida. Dantes gostavas das gaivotas, de as ver voar. Admiravas o seu ar sobranceiro. E agora? O que será que pensas? Passavas horas a olhar para o mar. Sentada na bicicleta, no miradouro. Olharias mesmo? Ou deixavas-te ir, para outras paragens…
Começou a chover de repente. Caiem aquelas gotas grossas e frias, daquelas que te faziam correr, mas de que ao mesmo tempo gostavas. Lembras-te, daquela vez em Paris? Quando os relâmpagos caiam na Torre Eifel e tu riste, riste e disseste que era lindo, Abriste os braços para os céus, abraçaste a chuva, as nuvens e dançaste descalça, sapatos numa das mãos, completamente encharcada, sem te importares com mais nada. As pessoas passavam, mas tu não as vias… não as vias ou não te importavas, inebriada, a dançar à chuva. À tua volta formava-se um remoinho e as gotas voavam em todas as direcções. Continuas a dançar? Dançavas em qualquer lugar, desde que ouvisses uma musica de que gostavas… e cantavas.
Às vezes, quando estou em casa, no meio da noite, sozinha, tenho ainda a esperança de que apareças. Fico quieta, sem me mexer; oiço o ranger das tábuas do soalho e o meu coração dispara. Serás tu? Tu gostavas de surgir do nada, parecia que incorporavas o ambiente, …num momento não estavas ali, para no outro olharmos e darmos de caras contigo, sem fazer um som. Era desconcertante.
Onde terás ficado? Durante todo este caminho?
O meu medo é ter-te perdido, no meio das voltas, voltinhas, rectas, subidas e lombas. Não posso voltar atrás, para te ir buscar. É um caminho que não posso refazer.
Por onde andas?

sexta-feira, 21 de maio de 2010

    POEMAS INCONJUNTOS
     Dizes-me: tu és mais alguma cousa Que uma pedra ou uma planta. Dizes-me: sentes, pensas e sabes Que pensas e sentes, Então as pedras escrevem versos? Então as plantas têm idéias sobre o mundo? Sim: há uma diferença. Mas não é a diferença que encontras; Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas; Só me obriga a ser consciente. Se sou mais que uma  pedra ou uma planta? Não sei. Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos. Ter consciência é mais que ter côr? Pode ser e pode não ser. Sei que é diferente apenas. Ninguém pode provar que é mais que só diferente. Sei que a pedra é a real, e que a planta existe. Sei isto porque elas existem. Sei isto porque os meus sentidos mo mostram. Sei que sou real também. Sei isto porque os meus sentidos mo mostram, Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta. Não sei mais nada.   Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos. Sim, faço idéias sobre o mundo, e a planta nenhumas. Mas é que as pedras não são poetas, são pedras; E as plantas são plantas só, e não pensadores. Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto, Como que sou inferior. Mas não digo isso: digo da pedra, "é uma pedra", Digo da planta, "é uma planta", Digo de mim, "sou eu". E não digo mais nada. Que mais há a dizer? A espantosa realidade das cousas É a minha descoberta de todos os dias. Cada cousa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, E quanto isso me basta. Basta existir para se ser completo. Tenho escrito bastantes poemas. Hei de escrever muitos mais, naturalmente. Cada poema meu diz isto, E todos os meus poemas são diferentes, Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto. Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra. Não me ponho a pensar se ela sente. Não meu perco a chamar-lhe minha irmã. Mas gosto dela por ela ser uma pedra, Gosto dela porque ela não sente nada. Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo. Outras vezes oiço passar o vento, E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido. Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto; Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo, Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar; Porque o penso sem pensamentos Porque o digo como as minhas palavras o dizem. Uma vez chamaram-me poeta materialista, E eu admirei-me, porque não julgava Que se me pudesse chamar qualquer cousa. Eu nem sequer sou poeta: vejo. Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho: O valor está ali, nos meus versos. Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

Alberto Caeiro
7.11.1915.
Do livro: "O Eu profundo e os outros Eus", de Fernando Pessoa, 12ª Ed., Ed. Nova Fronteira, 1980
Voltou ao ponto de partida.
Alice estava de volta à esplanada. Sentada a uma mesa, a olhar o mar, que se espraiava à sua frente, mas desta vez sozinha. Não que fizesse grande diferença… ao fim ao cabo voltara ao início.
Estava a sentir-se um logro. Tinha-lhe sido concedido o Todo. O Todo ficara em quase nada. As opções tinham sido desastrosas. Podia ter feito tanto… E acabara por viver uma vida que não lhe parecia aquela que lhe tinha sido prometida. Essa tinha-lhe sido roubada. Alguém a tinha vivido, em vez dela. Não podia culpar ninguém… As opções tinham sido as suas. Mas… será que teria sido mesmo esse o caso? Poderia dizer, com toda a propriedade que era livre? Julgava que não. As pressões e tensões acabam por ser muitas, de vários lados. Por um motivo ou por outro, acabamos por fazer concessões, abrir excepções, e afinal… afinal não estamos sozinhos aqui. Ninguém é verdadeiramente livre… a menos que seja um eremita, ou um louco. O livre arbítrio é uma invenção de lunáticos. Não temos escolha. Nascemos com tudo, todos nós, mas o destino vai-se encarregando da construção de uma trama, bem intrincada, de fios, laçadas e voltas, que nos vão arrancando a pele, pedaços, identidades, desviando os passos, ardilosamente, a seu belo prazer.
Uma vez, alguém lhe tinha dito:” Sinto a minha vida a esvair-se. Imagina que estás na praia, pegas um punhado de areia na mão, e vais deixando que escorregue, por entre os teus dedos. Assim sinto eu a minha vida. Como essa areia que cai; e cada vez a minha mão está mais vazia.”
Na altura achara um exagero, embora tivesse entendido. E agora ali estava. A taça estava à sua frente. Nunca tinha tomado consciência disso, mas neste momento estava ali. Ao nível dos seus olhos. Provavelmente sempre ali estivera. Apenas não a tinha visto. Mas mesmo assim, tinha a nítida consciência de que se estava a esvaziar, aos poucos, umas vezes lentamente, outras vezes mais depressa. O ritmo parecia aleatório, mas dependia dela e das suas decisões.
Neste momento a areia corria num fio fino, contínuo, que nem o vento forte do Guincho perturbava.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Unforgettable

Unforgettable


quinta-feira, 15 de abril de 2010




- Estou a ver-me a caminhar para dentro de uma igreja, e sabes, não sei se é algo que me agrade! Acho que a meio do caminho dava meia volta e voltava para trás. E acho que isso é algo que ele não merece de todo…. Não, não! Não merece mesmo.
Alice franziu a testa, apreensiva. Como se poderia convencer alguém a dar um passo que ainda agora lhe era penoso recordar?! Aquilo tinha-a destruído como uma doença … imperceptível de início, tinha-se instalando, mordiscando-lhe o corpo, ao de leve, ora aqui… ora ali… assim como uma beliscadura que se tolera, depois cravando-lhe os dentes bem fundo na carne, naquilo que se viera a transformar numa náusea lancinante, constante, que a acompanhava diariamente, movendo-se com ela, em uníssono, até já não saber se era a dor que fazia parte dela, se era ela a própria dor…
Com um tremor, voltou ao presente. - Mas essa era a sua história – pensou - não tinha de ser a dela. Ele era tão diferente… Tudo nele era genuíno, franco, desinteressado, verdadeiro. Sabia bem o que queria e estava a dar tudo por tudo para a ter. Estava cioso de criar o” Nós”, e era homem para isso. Ouvi-lo falar dela era comovente, tocante. Ficava de lágrimas nos olhos, romântica como era, cada vez que se sentava com ele, ao final da tarde, e ele começava a desfiar meadas de Beatriz…
- Tens de ter calma… Pensar… Pensa no que tu queres. O que queres tu Bia? Já não é a primeira vez que temos esta conversa… Tu sabes…
Beatriz enterrou a cabeça no meio das mãos e ficou ali, sentada, enrolada, para dentro de si, mergulhando no mais ínfimo do seu ser, abanando-se num movimento cadenciado. E ficou pequena.
Queria ser pequena. Muito pequenina, para voltar para os braços aconchegantes e protectores da mãe, onde sabia que nada poderia correr mal, porque ela nunca o permitiria. Nessa altura tudo era simples e certo e sabia sempre o que queria ou fazer.
- Eu tenho medo! – Sussurrou baixinho. - Tenho medo! Tenho medo do que possa acontecer! Tenho medo de o desapontar, tenho medo de me desapontar!
De que assim, ele deixe de me amar! Ou eu!
Tenho medo… Do amanhã! Já te disse… Alice abraçou-a
-Beatriz… É bom teres medo… Faz-te pensar. É um passo muito importante esse…
Se era! Por um milésimo de segundo voltou atrás no tempo…Vestida de branco, caminhava devagar, decidida, em direcção a ele, em direcção ao abismo. Ao longo dos anos, passo a passo foi ficando cada vez mais perto, daquela arriba do Guincho. Enquanto sorria chorando, cantava gritando, ia sentindo cada vez mais o salgado do ar, a frescura do vento, o cheiro da maresia…- Voltou a concentrar-se no presente.
- Cresce miúda! Já é tempo! Não cries tantos entraves. Não queres sofrer… Ninguém quer… Mas a vida é mesmo assim. Feita de desafios. Queres ficar a assistir? A ver a vida passar por ti? Está a dar-te uma oportunidade de seres feliz… Está a abanar-te. Não voltes as costas, com medo de te tornares infeliz. Sente! Aproveita! Vive rapariga!
Quase que se sentia envergonhada com o que estava a dizer… Mandava-a avançar, atirar-se de cabeça... Ter forças… Ela que se sentia como uma florzinha…frágil…
- Sabes, se calhar era disso que eu estava a precisar. De alguém que me dissesse umas verdades. De um abanão dos teus! – Disse Beatriz.
- Ora bem! Abanões são comigo! Abanão é o meu nome do meio! Sou a Miss Abanão! Ah! Ah! Ah!...
-Doida… És mesmo doida, Alice! Só mesmo tu para me fazeres rir!
Às vezes penso…
- O quê?! Diz-me Bia.
- Às vezes, penso (é meio egoísta e tudo o mais, eu sei) na sorte que tivemos, mesmo no meio de todo o azar; nem devia dizer isto… é meio constrangedor. Afinal, deve ter sido um dos momentos mais complicados da tua vida. Mas não posso deixar de dizer … se não tivesse acontecido aquele dia, eu não te conhecia… Não assim como hoje, entendes? Provavelmente poderíamos até trocar uma palavra ou outra, daquelas que toda a gente acaba por trocar… mas não mais do que isso. . É uma verdade que já nos tínhamos encontrado muitas vezes, mas sabes, nós nunca nos tínhamos visto.
É tão bom para nós, que sejas nossa amiga! Para mim e para o Gil. Adoro-te!
Alice levantou-se. Não doía. Estava tratado e resolvido… mas daí a ouvir uma coisa destas!
Até a compreendia. Não era por mal que a miúda falava. Estava a ser honesta. Mas daí a …
- Bem… Tu tens muito para pensar, organizar – disse-lhe zombeteira – e eu tenho de ir. Ainda tenho algumas coisas para resolver. Porta-te mal!
- Ficaste aborrecida, desculpa! Não podia ter dito uma coisa destas! Desculpa, desculpa! Fui mesmo muito egoísta! Sou uma idiota que só diz e faz disparates!
Não sejas tola, Beatriz! Eu já te conheço muito bem. Sei que não fizeste por mal. – e agarrando-lhe a cabeça, abanou-lhe os cabelos despenteando-a, enquanto Beatriz se ria tentando soltar-se. – Toma! Para não seres parva!

domingo, 21 de março de 2010

Adiamento


Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…
Esta espécie de alma…
Só depois de amanhã…
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã…
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital…
Mas por um edital de amanhã…
Hoje quero dormir, redigirei amanhã…
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…
Antes, não…
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã…
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…
Sim, talvez só depois de amanhã…

O porvir…
Sim, o porvir…

Solução Editora, I, Lisboa, 1929
Álvaro de Campos
14-4-1928

sábado, 20 de março de 2010

Dia do pai


Dia do pai
Fui educada na ideia de que, tudo aquilo que eu fizesse, por mais singelo e modesto que fosse, tinha muito mais valor e importância do que qualquer outra coisa, vistosa, linda de encher o olho, mas comprada numa qualquer loja, por melhor que ela fosse, o que era corroborado pelo regozijo demonstrado pelos meus pais, quando abriam os meus presentes, feitos de propósito para estes dias. Claro que, paralelamente, apareciam outros, mas que funcionavam mais como um complemento às verdadeiras estrelas do dia: As minhas obras de arte...
Há uns tempos, encontrei algumas dessas” peças “em casa da minha mãe e uma delas em particular fez-me sorrir. Na altura eu andava a ser iniciada” nos bordados” e lembrei-me de fazer uma quadra, para o meu pai. A minha mãe, pessoa metódica e organizada, disse-me que tínhamos de comprar o tecido, as linhas, pensar nas cores, no desenho, na quadra, passar com químico para o tecido … e só depois pôr mãos à obra. Um verdadeiro tormento! Para mim, a coisa era pensada e logo executada! Demorar um dia que fosse … era uma eternidade, um suplício! Tinha tido a ideia, queria executa-la prontamente e ver o resultado, sem mais demoras. Tudo o resto podia esperar! Claro que para a minha mãe havia outras prioridades, que não se compraziam com a satisfação destes meus ataques criativos… Por isso resolvi improvisar… Se não tinha tecido… Tinha papel… Linhas podia usar as do paninho que estava a bordar… Só faltava a quadra… mas o frenesim de experimentar era tanto, que nem conseguia pensar… dei voltas à cabeça, e mais voltas…até que tive outra ideia brilhante… já que estava a improvisar, porque não adaptar? Era só mudar uma palavrinha e tudo se compunha na perfeição!
Escrevi a quadra numa folha de papel, fiz uma florzinha amarela, com duas folhinhas verdes, peguei numa agulha e atirei-me ao trabalho. A coisa não foi tão fácil como parecia…. O papel não ajudava, os furos feitos pela agulha eram grandes, a linha tinha de ser puxada muito devagarinho para não rasgar… Terminei e contemplei com orgulho o resultado. Estava de se lhe tirar o chapéu! A flor amarela, e em azul, a quadra, com os pontos de exclamação no fim e tudo:

Com três letrinhas apenas
Se escreve a palavra pai
É das palavras mais pequenas
A maior que o mundo tem!!!

Foi uma das coisas que fiz com mais sucesso, mostrada a toda a família, embora a certa altura tenha começado a surgir em mim, uma certa duvida sobre o que gostariam mais… se do bordado, se da quadra…
O meu pai, esse, adorou.

domingo, 7 de março de 2010




Este era um dos programas que em fazia ficar colada ao ecrã, horas antes de começar, para não perder nada, principalmente as tiradas destes dois..

sábado, 6 de março de 2010

Flower Duet

Sublime


terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Era uma Vez…





Era uma vez…
Era uma vez… A Vez. É essa mesma. Aquela que se usa quando se conta um conto, ou se quiserem… quando se acrescenta um ponto. O certo, o certo é que a Vez estava muito triste.
Tão triste que se tinha recolhido num cantinho, a chorar, escondida de tudo e de todos.
- Quem me dera ser de novo a Vez – dizia ela, a soluçar – Como eu era feliz… Dantes, a toda a hora era usada, por tudo e por nada. Cheguei a ficar cansada, com medo de ficar gasta…
Era uma vez … uma princesa…
Era uma vez…. Uma fada…
Era uma vez, um gato maltês…
Era uma vez…
Aiiii…. Porque tinha tudo de mudar? Porque tinham as pessoas de deixar de dizer… “ Era uma vez…” ??
- Eu continuo a dizer “ Era uma vez…”- disse uma vozinha.
A Vez ficou muito assustada. Que voz era aquela, que aparecia ali, no jardim de Sua Alteza, a Rainha de Copas? Tinha tido muito cuidado, na escolha do seu cantinho. Aquela era uma história do antigamente, com meninas que crescem e mingam, lagartas que fumam cachimbos de água, gatos sorridentes e imaginem… coelhos com a mania da pontualidade! Nada que pudesse interessar nos dias de hoje, em que todos andam apressados, é certo, mas com vergonha de não chegar a horas … Será que também se esquecem dos relógios?
Os relógios são tão engraçados… com aqueles bracinhos a abrir e a fechar e as mãos muito abertas, sempre a apontar - pensou ela, sorrindo.
- Depressa! Tenho pressa, tenho pressa! – Disse o Coelho Branco, que passou, rápido que nem uma seta, sempre a correr, sempre apressado e sem parar. A Vez correu atrás dele, o mais depressa que pode:
– Pára! Não corras tão depressa! Pára! Foste tu quem falou?
O coelho continuava, sempre, sempre a correr, parecia um branquinho pompom saltitante, pulando pelo meio das rosas, que surpreendidas e meio tontas, se viravam ao vê-lo passar, quase a cair, quase a derrapar.
Ela parou, ofegante, mão no peito, sem conseguir respirar, de coração aos pulos.
- Mas que bicho tão rápido!
No meio de toda aquela confusão, olhou em volta e viu que já nem sabia onde estava…
- Para onde foram o jardim, as cartas, as rosas? Mas que grande aborrecimento! Não é que tinha mudado de história?! E nem cumprimentar a Alice tinha conseguido… Gostava muito dela… Tudo culpa daquele coelho. Teria sido ele quem tinha falado?
E presa a estes pensamentos, começou a andar. Mesmo à sua frente estavam três casas, umas a seguir às outras. A primeira era muito frágil e pobre, feita de palha, toda desalinhada e descomposta… parecia que por ali tinha passado um vendaval. Andou mais um pouco e ficou em frente à segunda casa, desta vez feita de paus e troncos. Não estava em muito melhor estado do que a primeira…
- Já sei onde estou! Estou na história dos três porquinhos! Só espero que ele não ande por aí….
- Hummmm…. Deixa-me cheirar-te… Sentir-te…. -Disse uma voz, num sussurro, quase colada ao seu pescoço – És macia - disse ele passando a garra pelo seu braço - e macia quer dizer tenra…Eh eh eh ! Não serás tu por acaso priminha do Capuchinho? Não te comparas a um porquinho, mas na falta…
- Ora, ora! Pois se não é o Sr. Lobo!
Está-me a estranhar, é? Não me diga que também não me reconhece… Parece ser um mal geral…
Mas que mal agradecido, Sr. Lobo. Não saber quem eu sou…
O lobo olhou, bem no fundo dos olhos dela, bocarra escancarada, dentes brancos e aguçados a luzir à luz do Sol…
- Realmente… Olhando assim de perto… Mesmo de pertinho… E o teu cheiro não me é estranho!
- Deixe-se de coisas, Sr. Lobo – disse a Vez – ponha lá os óculos! Vá! Ambos sabemos que é cego que nem um morcego… Até foi por isso que atacou a avozinha… Vá!
Mau, mau – disse o lobo, puxando os óculos do bolso e colocando-os na ponta do nariz…
- Quem tem medo do Lobo Mau, do Lobo Mau! Ah, ah ah!! – os porquinhos tinham aparecido do nada, e corriam à volta do Lobo, berrando a plenos pulmões:
- Quem tem medo do Lobo Mau, do lobo mau, ele é pior do que um carapau!
- Fora pirralhos intrometidos! Fora! – Disse o lobo, vermelho de raiva
- Estou cansado de andar atrás de vocês!
Xô! Levam uma dentada! Ai levam, levam!
Como se estivesse a enxotar moscas, o lobo afastou os porquinhos, esbracejando, tentando acertar nas suas cabeças uns valentes piparotes, que falhavam o alvo e os fazia atirarem-se para o chão, rindo a bom rir.
Era uma vez…. Disse a vozinha de novo, baixinho…
Hum? Onde estás tu? Responde…
Um dois três… É a tua vez!!! Então? Estás a fingir ou mesmo a dormir? Alice abriu os olhos.
- Então meu amor? Estavas a dormir?
- Mamã! Que sonho tão lindo! Eu era a Vez!
A Vez? Mas que imaginação tão fértil tem a minha menina… Amanhã tens de me contar, está bem? Agora toca a dormir.
E com carinho, a mãe beijou-a e apagou a luz. Alice, ou melhor a Vez, aconchegou-se melhor, fechou os olhos e partiu de novo para o reino do faz de conta.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010



Parecia que não se iria conseguir ver livre dele assim tão facilmente…
O anel repousava, uma vez mais no aconchego da sua mão. Pensara que se o ignorasse o problema desaparecesse… um pouco como os gatos fazem: ralhamos com eles, e eles fecham os olhos. Se não nos vêem, não existimos… se não existimos… não existe problema … e podemos continuar. Seguir como se nada se tivesse passado.
Não fora intencionalmente que o fizera, mas de qualquer forma, ali estava ele. Quase que lhe podia imaginar um sorriso sarcástico, de vitória, mesmo ali… ali onde se adivinhava um brilhozinho… bem mesmo na parte concava, que estava virada para ela.
Tudo tinha voltado ao início. Mais uma vez, como tantas outras, ali estava, parada dentro do carro, cabeça encostada à janela, pensando para onde ir… sentia-se como uma traça, hipnotizada pela luz… a luz chamava-a.
“- Se soubesses o que te aguarda do outro lado… irias? “
É que ela sabia o que a aguardava do outro lado. Sentada naquela mesa de café, acordada, o destino tinha-se desenrolado, em frente dos seus olhos; Desde os dias do mel, na alegria dos primeiros tempos, o que a fizera sorrir, encantada, passando pelas primeiras agruras, depois o amargo do fel, o azedume, a partida. Ficara gelada. Nem percebera o que a empregada do café lhe dizia. Balbuciou qualquer coisa, pegou nas coisas e saiu, em transe. Acordou com a mão dela no seu ombro, a dizer que se tinha esquecido do anel.
“ Irias?!” Vais Beatriz? – A voz dentro dela não se calava, repetindo incessantemente as mesmas perguntas, vezes e vezes sem conta… “ Sabendo o que sabes… Valerá a pena? Estás disposta a tanto?
Não seria uma prova ainda maior de amor … poderia ir em frente, mas não seria um acto de egoísmo?
Olhou mais uma vez para o anel. Tinha aquecido com o calor da sua mão. Apertou-o Era agradável, a sensação de o ter ali. Brincou com ele por entre os dedos, enfiando-o até meio, ora num, ora noutro.
Quase sem dar por isso colocou-o no anelar. O anel acomodou-se, sorrateiro. Beatriz fechou os olhos e adormeceu

Glassworks

sábado, 13 de fevereiro de 2010

O anel







O anel era simples. Um anel. Liso.
Não era por isso que deixava de ser bonito. Pousado na mesa, ao lado da chávena de café, a luz do Sol incidia sobre ele, reflectindo-se sobre a pele dela. Carregava consigo o peso da tradição. Nada a que ele, anel, fosse alheio; há duas gerações que vinha a desempenhar aquele papel… sempre igual. Mas desta vez, ao invés de acabar no dedo de alguém, acabara ali, preso a uma decisão que tardava em chegar. Poder-se-ia dizer que o protagonismo lhe tinha sido roubado … o que o punha, se pensarmos bem, em pé de igualdade com todos os outros objectos banais, que por ali estavam: a chávena de café fumegante, a colher, o pacote de açúcar ou as chaves do carro. Não passava de um objecto, mais ou menos valioso, é certo, mas apenas e tão-somente um objecto.
Beatriz continuava de olhos presos no mar. Quando era pequena passava horas assim, sentada num banco sob a muralha, cabeça entre as mãos. Achava o oceano tão lindo que o queria guardar para si – “Pode ser que gravando todos os pormenores eu o leve comigo…”- dizia ela, mas por mais que tentasse, nunca conseguia… todas as ondas lhe pareciam únicas, diferentes. Umas eram pequenas, mas de um azul estonteante, outras enormes como casas, mas de um verde transparente, outras requebravam com violência, ribombando pela arriba, outras eram delicadas, mas com laivos castanhos, outras… Não era capaz de eleger “ a onda” de entre todas as ondas, ou de fixar toda aquela imensidão… Por isso se deixava ficar, as horas rolando, o dia passando. Era também uma forma de se encontrar. Partia para outros instantes, momentos, lugares, umas vezes fugazes, outras vezes longos. O que começava por ser uma tentativa de abarcar o todo acabava por se centrar nela.
Não deixava de ser difícil, perceber o porquê de tudo aquilo… interpretar o que sentia, o que deixava para trás e… e tomar uma decisão. Final, desta vez.
Não lhe era fácil tomar opções. Não pelas consequências que estas lhe poderiam trazer, mas mais pela sensação de perda subjacente. Para ela era algo incontornável. Seria tão bom poder ficar na terra de ninguém…
Nuns dias iria a Espanha, outros a Portugal, noutros ficaria quietinha, ali mesmo no meio.
Porque teriam as pessoas de complicar, rotular, afinar agulhas, passar ao passo seguinte…
O agora já ela conhecia. Tinha vindo a nascer aos poucos, como uma florzinha, daquelas que crescia nas dunas do Guincho e que lutava com força para se manter agarrada à terra, no meio de todo aquele vendaval. Não seria só isso já suficiente? Para quê tornar aquela flor, já em si perfeita, numa outra flor… para quê dar-lhe outras raízes? Ela passava bem assim. Podia até suceder que ao revolver a terra à sua volta, ela se ressentisse, brechas fossem abertas e a florzinha, outrora forte e sã, começasse a definhar, acabando por morrer. Mesmo presa às dunas do Guincho, ela não deixavam de ser livre… Porque era ela. O que sucederia se tudo mudasse?
- Deseja outro café? – Perguntou-lhe sorridente a empregada.
- Não, não, deixe estar. Estou mesmo de saída… - e pegando nas chaves do carro, no casaco e na mala, Beatriz levantou-se, arrumou a cadeira e saiu em direcção ao carro.

sábado, 30 de janeiro de 2010

O Principezinho e a raposa




Em conversa com uma amiga, lembrei-me deste excerto de " O principezinho". A conversa girava à volta das relações inter-pessoais e da agitação dos dias de hoje,em que as pessoas tendem a privilegiar os relacionamentos rápidos e superficiais, com todas as implicâncias nefastas daí decorrentes.
Criar laços, cativar, caiu em desuso.
É uma pena. Ficaremos tão mais pobres...



- Bom dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu polidamente o principezinho que se voltou mas não viu nada.
- Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira...
- Quem és tu? perguntou o principezinho.
Tu és bem bonita.
- Sou uma raposa, disse a raposa.
- Vem brincar comigo, propôs o princípe, estou tão triste...
- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa.
Não me cativaram ainda.
- Ah! Desculpa, disse o principezinho.
Após uma reflexão, acrescentou:
- O que quer dizer cativar ?
- Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras?
- Procuro amigos, disse. Que quer dizer cativar?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa.
Significa criar laços...
- Criar laços?
- Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos.
E eu não tenho necessidade de ti.
E tu não tens necessidade de mim.
Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás pra mim o único no mundo. E eu serei para ti a única no mundo...
Mas a raposa voltou a sua idéia:
- Minha vida é monótona. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei o barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora como música.
E depois, olha! Vês, lá longe, o campo de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelo cor de ouro. E então serás maravilhoso quando me tiverdes cativado. O trigo que é dourado fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento do trigo...
A raposa então calou-se e considerou muito tempo o príncipe:
- Por favor, cativa-me! disse ela.
- Bem quisera, disse o principe, mas eu não tenho tempo. Tenho amigos a descobrir e mundos a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não tem tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres uma amiga, cativa-me!
Os homens esqueceram a verdade, disse a raposa.
Mas tu não a deves esquecer.
Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas"

Antoine de Saint-Exupéry

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Will you?


Diz-me Alice…. Achas que tenho hipóteses?
Gil tinha tomado nas suas as mãos dela, enchendo-a com o seu sorriso, que sem ele se dar conta, carregava o Sol. Sempre que pensava ou falava de Beatriz, era assim: o mundo parecia pequeno demais para ele.
“ A gata Alice” como ele lhe começara a chamar, estava enroscada num enorme cadeirão de verga, manta sobre as pernas, aproveitando o calor do início da tarde.
- Fazes-me rir, sabes… Um dia … Há muito, muito tempo… fui assim como tu. Doida. Obstinada. Apaixonada… Para mim também não existia mais nada.
- Quando estou com ela, o mundo parece parar. Tás a ver? Tudo deixa de existir. É uma cena marada….Imagina um filme… É pá… assim daqueles para o meio fatela, onde as miúdas se fartam de chorar… e às vezes a malta também, mas pronto…. – Gil largou-lhe as mãos e deu uma pancada seca nas pernas, meio envergonhado com o que deixara sair… - que artes e manhas tinha aquela mulher para lhe despir a Alma? - perguntou a si próprio - Siga! É assim: O mundo é o cenário, os outros os figurantes e no meio … estamos Nós. Nada existe sem Nós e tudo existe por Nós e para Nós.
Sim – disse Alice – Ainda me lembro de como é estar apaixonada… é precioso, sagrado. É um estado de graça. Algo que nos possui e nos diminui a razão, desfoca a visão, arrasa com todos os sentidos… -Estás a ver? Estou a ficar uma verdadeira poetisa, só de falar nisso… -Por uma palavra sentes-te capaz de tudo… por um gesto então…
Mas disseste-me que tens medo. Mas medo de quê? A paixão não se condói com os teus medos… Tem vida própria e exige ser vivida. Entrega-te a ela. Desfruta-a. Aproveita-a. E o mais importante de tudo: Lembra-te que não é eterna. Faz dela um culto…
- Eu não quero fazer nenhuma cena dessa!!! E se é para adorar alguma coisa… também não é preciso. Adorar, já adoro a Beatriz… Mas adoro mesmo, meu! Só tenho medo é que seja demais para ela…
Ela sempre curtiu uma onda de solidão e tal,” viver sozinha é que é do melhor” e tal e coisa… gosta de sair por ai fora, sem destino… Tás a ver… Vem agora aqui o Gil, armado em … Sei lá eu… e trufas… Olha, eu nem consigo dizer nada de jeito… Às vezes… às vezes farto-me de puxar pela tola… Uma gaja como ela, que tem tudo, vai gostar de um Mongo como eu porquê?
- Gil… - Alice inclinou-se e tomou-lhe o rosto nas mãos – Tu…
- Eu não faço sentido sem ela, Alice. É um bocado de mim, percebes… acho que nunca tinha entendido isso… só agora, que estou a falar nisto contigo… -Tu é que devias ser psicóloga! Em vez de estares a aturar aquele gajo marado, todas as semanas … o tipo não joga com o baralho todo… - Mas adiante…
Alice, isso tudo que tás a dizer é muito lindo, mas eu sinto mais… Já passei por tudo isso da paixão. Não sou um menino! Olha para mim… Mas não vem para aqui ao caso. Não sei se posso arriscar…
Agora que a encontrei, não a posso perder.
Achas que posso chegar ao pé dela e dizer…
- Beatriz…. Queres casar comigo?