quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Ano Novo







Andava eu a fazer as compras de ultima hora, daquelas que sempre nos perseguem e das quais nunca nos lembramos, de tão banais (não me esqueci do doce de castanha, dos suspiros ou das sementes de cardamono.. mas já os guardanapos e a água fizeram-me voltar à loja..) quando ouvi alguém ao meu lado a comentar que ainda não tinha comprado as cuecas vermelhas...  Apurei o ouvido. Cuecas vermelhas? Que muita gente comprava cuecas azuis ( o azul cueca vem provavelmente daqui), já eu sabia; basta olhar para as montras das lojas de langerie... Agora vermelhas... Aparentemente as cores estão relacionadas com aquilo que se pretende. Amor ao vermelho, cor da paixão... Verde ao dinheiro, cor dos dólares e branco aos valores espirituais, cor da pureza. O que me faz pensar, que nesta coisa das cuecas, não se pode ser muito ambicioso... A invenção das  azuis  só pode ter partido de alguém com espírito prático, que ao comprar um" dois em um " terá pensado, sorriso estampado no rosto -Porque não? Vai azul e já está!!
Superstições ligadas ao ano novo são muitas e variam de família para família... Desde as doze passas a entrar com o pé direito.. há de tudo... Confesso que tenho seguido algumas delas, das mais comezinhas..Mas este ano...este ano queria algo em grande!
As cuecas estão fora de questão...Vestir três pares de cuecas não me alicia, e as azuis a esta hora já esgotaram.
Passando ao seguinte, ainda ligado aos preparativos, convém entrar o ano vestido a rigor, porque, reza a tradição, assim se levará o ano que se anuncia... por outro lado, também se diz que branco é a cor a escolher... Outro impasse... roupa de cerimónia branca?! Adiante...
As passas são imprescindíveis!!! Devem ser 12 e comidas nas ultimas badaladas do ano.  Assim como segurar uma taça de champagne e ter umas notas na outra mão..( qual mão?!) tudo isto em cima de uma cadeira, não esquecendo que se deve de entrar o ano com o pé direito... ou com os dois pés... como ouvi hoje dizer, não vá o diabo teçe-las... Complicado... Se por um lado me faltam mãos, por outro ainda corro o risco de começar o ano no hospital, ao forçar a família a acompanhar-me em tamanhos malabarismos...
Por isso, este ano vou fazer algo verdadeiramente inovador... Vou esperar o Novo ano como me apetecer, de taça de champagne na mão, com ou sem passas, e do mais que me lembrar..
Bom Ano!!!

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009


Natal.
Mais uma vez, cá estamos nós, catapultados para o meio de uma imensa vaga consumista, que nos engole e obriga a integrar o número daqueles que sem saber como, de repente dão por si, em centros comerciais apinhados, na demanda inglória da compra dos presentes da "obrigação".
A "obrigação" foi sempre algo que me incomodou. Talvez por isso, não sinta o tal espírito natalício que parece contagiar tudo e todos...
Presentes devem ser dados quando sentimos vontade.
Quando passamos por uma loja qualquer e vemos o nome daquela pessoa a embrulhar aquele objecto...
Quando acordamos e sentimos que nos apetece dar alguma coisa e revolvemos tudo à procura do presente perfeito...
Quando simplesmente queremos...  
"Natal é quando um homem quiser" parece ser já um lugar-comum. Pena é que não seja recordado mais vezes.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009




 O corpo de Maria Alice continuava ali, atirado para uma cama, olhos no vazio.Ao seu lado, numa cadeira, estava o rapaz que o salvara. Salvara o corpo, mas não a salvara a ela. Alice tinha saltado, de dentro de si,  para o abismo. Quando os seus pés resvalaram e ele a apanhou, já ela tinha partido, nas asas de uma gaivota que  por ali voava.
Nunca se tinha sentido tão liberta, tão livre, mas ao mesmo tempo tão perdida. Viu o rapaz a agarra-la, a abraça-la com força. Depois veio o vazio.
Vagou durante muito tempo, no meio de gente estranha e desconhecida, por terras brancas, de gente branca... e voltou a procurar-se. Estava naquilo que parecia ser um hospital. O marido ali, ao lado a chorar... E agora de novo o rapaz. Teve vontade de lhe passar os dedos pela face e de lhe agradecer. Em segundos, ele tinha feito mais, do que muita gente que a conhecia desde sempre tinha feito. Tinha-a agarrado. Tentou tocar-lhe, mas em vão. Não conseguia. Sem aquele corpo que jazia ali ao lado, nada feito.
Tinha-o observado em pormenor. Os cabelos, alinhados e penteados ao longo da cara, os olhos grandes e muito abertos, os lábios finos e bem desenhados, as mãos de dedos compridos.. Pareciam os de  uma pianista... Cada vez que olhava, dava outro passo que a distanciava ainda  mais daquela cama e daquele ser. Tentava encontrar algo que a puxasse de volta, mas nada.Talvez recordar-se de si, da sua vida, ajudasse.. Não adiantava .Era uma porta que não conseguia abrir. Não encontrava a chave... Tinha-a perdido algures, no meio daquele percurso.
Estava a ficar sem motivos, razões para andar por ali.
  Os médicos que passavam falavam do seu estado, mas nem isso lhe parecia interessar. Por isso se sentia à deriva, sem rumo.Não se sentia bem. Nada lhe dizia nada.
Lembrava-se da dor. Essa tinha passado, mas fora substituída por algo com que não contava. Dormência. Era isso mesmo. Dormência ou ausência de tudo.Pura e simplesmente não sentia. Era tudo muito confuso.
Pensando bem, de uma forma muito linear... O estar vivo é isso mesmo: sentir! O calor do Sol, alegria, tristeza, amor, ódio...dor... se ela não sentia, quereria isso dizer que deixara de existir? Mas por outro lado, a prova física da sua existência estava ali, no meio dos lençóis brancos. Não conseguia perceber.
Perdera o passado, o futuro, e mesmo o agora estava comprometido.
Pairava, misto sombra e espírito, intocável, e incorpórea.
Junto ao tecto, uma aranha tecia pacientemente a sua teia de fios brilhantes e transparentes. A luz do Sol projectava-se neles, reflectindo luzes de todas as cores, que se propagavam por todo o quarto, atingindo Alice.
 -Ela parece tão serena- pensou o rapaz - Não te deixes ir!!! Sei o que estás a passar. Já estive desse lado...
Tás muito bonita... Vá! Não sejas parva! Vive! Nem todos têm a mesma sorte. Tu tens uma outra oportunidade... Não a desperdices. Vive! Vive!!!É para isso que cá andamos.- E sem pensar, inclinou-se beijando-a ao de leve na face, enquanto lhe apertava a mão.- Força! Tinha de te dizer isto.
O rapaz levantou-se, de rompante, angustiado com as recordações que carregava consigo e que o tinham obrigado a ir ter com ela.
Ele queria que desta vez fosse a sério.
Pelas duas, tinha de a salvar.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Entre o céu e o mar




...Poderá alguém amar-me mais do que  ele me ama? - pensava ela, rindo nervosamente- Olho para os seus olhos e só me vejo a mim.. Não sei porquê, mas mete-me medo... Fico sem graça, sem jeito. Parece tudo ainda muito cedo... Não sei o que fazer com tudo isto. Ainda estou a digerir tudo o que se passou. Aquele dia da praia...- Beatriz  voltou atrás no tempo.
Aquele dia da praia era algo com que ela sonhara havia muito tempo. Tivera muito trabalho para que ele se desse conta dela. Achava ela...Afinal, ele sempre estivera interessado. Todos aqueles olhares... toques de dedos, mãos, sorrisos...  gestos ensaiados, pensados para despertar-lhe o desejo...
E agora ali estava ela,  enroscada nele. Se calhar ele pensava o mesmo... Que tinha tido muito trabalho para a conquistar. Mas isso só poderia ser um sinal, não era? Era bem capaz..
Beatriz sorriu,saboreando o momento, a sensação, enquanto se aconchegava mais. Era bom! Sabia Bem.
Mas ao mesmo tempo tinha medo. Ele era uma força bruta, incontrolável, jorrando mel e  não olhando a nada, para nada. Só a via a ela. E se ela não fosse suficientemente grande? E se de repente ele descobrisse que afinal ela não valia tudo aquilo que ele julgava que ela era? Depois... Depois havia aquela sensação de sufoco... Não queria que ela chegasse. Não desta vez, em que se sentia tão bem.
  Não ia pensar mais nisso.
 A vida deve ser vivida um dia de cada vez. Para quê pensar no amanhã, se temos o hoje aqui tão perto, cheio de ofertas prontas a ser vividas? Iria fazer isso. Viver o hoje. E hoje queria estar assim, entre o céu e o mar, nos braços dele. Hoje sabia que o amava e que o queria mais do que tudo.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Vitimas... procuram-se!!!




Há dias assim.Vermelhos.
Congeminações  superiores são  feitas, para  atormentar, aborrecer, irritar, irar, fazendo subir pouco a pouco uma  onda de calor,que se instala no fundo do estômago e que vai subindo, devagar,milímetro a milímetro até tomar conta de tudo. O semblante muda, a  expressão torna-se crispada, tensa, os movimentos tornam-se contidos e rígidos.  Qualquer comparação com uma caldeira, em pressão máxima, não é exagero ou mera coincidência.É mesmo real.
É altura de perscrutar o horizonte, em busca de uma vítima. Basta preencher o perfil, o que nem sequer é muito complicado: ser simpatico, conciliador, querido, (um pouco burro, às vezes também ajuda) e pronunciar algumas das palavrinhas mágicas... " não estejas assim",  " isso não tem assim tanta importância," não deixando nunca de lado, o inimitável e celebérrimo " tem calma" e o " não te enerves".
É um momento quase mágico,o encontro com a presa. Não  raro, o olhar é então trespassado por um sorriso, na maior parte das vezes interpretado pela presa incauta e ingénua como um sinal de evidente melhoria de estado de espírito.Erro crasso. O predador aparentemente acalmado, deleita-se por antecipação,com o sabor da libertação da ira, que caí , numa onda verborreica, rica em interjeições e composições espalhafatosas vocabulares, contemplando o próprio e estendendo-se muitas das vezes ao restante agregado familiar.É a apoteose.O apogeu.
Saciado, o predador solta um urro final de alívio e retira-se, deixando a vítima prostrada e desalentada.
É maldade pura, sim! Mas quem nunca teve pensamentos assim, mesmo, mesmo maus...
Não tiveram? Oh.. Então cautela..pertencem por certo ao grupo das presas boazinhas...
Ao virar da esquina, no meio da multidão... Nunca se sabe...
 E os lobos...Os lobos vestem às vezes peles de cordeiro...

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Olhos


Bea estava sentada, a enrolar o cabelo entre os dedos, de uma maneira muito sua. Fazia sempre isso, quando estava nervosa, ou não tinha o que fazer.Esperava por ele.
-Pronto! -Disse ele,dando-lhe um beijo na nuca, por entre os cabelos.Já cá estou... Tá feito.
-Fizeste bem...disse ela. Se era uma coisa que tinhas mesmo de fazer...se para ti era mesmo importante..
-Oh Bia...- disse ele, coração a explodir. Sempre que olhava para ela sentia que mudava.Era um sentimento tão intenso que chegava a doer. Parecia que o coração não bastava. Era maior do que ele,  que os céus, que a  terra. Maior do que ... Maior.
- Não fiques assim a olhar para mim... Dessa maneira deixas-me sem jeito! O que foi? Diz-me...
- És tu!Tu! Tu! Vem cá- Puxou-a para si de rompante e abraçou-a. Deixou-se ficar por um pouco, meio embriagado com o aroma dos seus cabelos e aquele perfume dela, que o deixava louco - Deixa-me olhar para ti...Para os teus olhos... Não digas nada... Deixa-me só olhar no fundo dos teus olhos!Vá lá.. Deixa..
Havia coisas que ainda não lhe podia dizer. Tinha passado muito pouco tempo, desde aquele  final de dia, na praia.  Estava como de costume a " guitarrar" quando ela passou, como quem não quer nada e lhe atirou um dos seus sorrisos, cheio de promessas, andar lânguido, de gata, a caminho do carro. Sem pensar, largou a guitarra para a areia, correu atrás dela e  agarrou-a pela mão. Beatriz voltou-se e ele tinha-a beijado.Primeiro devagar,docemente, os seus lábios nos dela, ... depois sofregamente, deixando-se ir numa torrente incomportável. Ficara nas nuvens e ela também.
Mas ainda era cedo. Tinha medo de a assustar, de a sufocar com todo aquele sentimento que ele próprio não sabia controlar ou entender. Mesmo agora,  ainda tinha dificuldade em acreditar... nunca pensara ter coragem.
Estavam a viver um sonho e tinha medo de acordar ou de a acordar.
Cada vez que olhava para ela, tomava os seus olhos e era com eles que a via.Poderá alguém amar mais?

sexta-feira, 13 de novembro de 2009


Estou aqui sentada, a olhar. Contemplo o fascínio do branco, que aos poucos vou maculando. Se por um lado sinto uma vontade pungente, quase dorida de escrever, por outro não deixo de me sentir presa a este vazio, a este ser que não é.Os meus dedos pairam sobre o teclado, prontos para partir em disparada.  Não penso em nada. Aguardo apenas. A minha alma reclama a escrita, mas o meu cérebro diz não. Ainda não é hora. As palavras que vão surgindo a custo, doem na folha de papel virtual,  a tinta vai caindo...
Muitas vezes me perguntam se o que escrevo aqui tem a ver comigo. Quando digo que não, as pessoas fazem um ar entendido, como quem diz: - Sei...achas que me enganas... Mas de facto é assim. É óbvio que impresso com as histórias estará sempre um pouco de mim,já que sou eu quem as escreve. As minhas   vivências estarão sempre presentes, espreitando aqui e ali, mas não de forma sublimada. Quando escrevo como  uma personagem faço-o por completo, visto as suas dores,gostos e  expectativas. Deixo de ser eu para passar a ser ela. Por isso mesmo, quando me sento aqui, não sei o que irei escrever. É ela quem toma conta das teclas...quem conta a história... eu limito-me a observar a  descrever e às vezes, quando me é permitido a sentir.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009


- Foi uma cena do caraças! Pá.. eu já tinha visto a tipa, a andar pela arriba fora, depois a voltar para trás.. e a ir... e a voltar.. parecia que estava com uma bezana.... uma bezana ou uma moca!Cena mesmo marada, meu! Bem a gaja de repente pára. Fica mesmo à beira, mesmo à bordinha... Tás a topar? Mesmo ali! Eu ao pé! E a gaja nem me via. Ouve! Vejo-a a abrir os braços... Pronto, afinal não é nada...- Pensei cá para comigo-  Deve ser lá aquela coisa dos outros... daqueles que andam com umas cenas amarelas, até aos pés e que andam por aí aos pulinhos e a fazer ommmmms e uuuuuums ... Oh pá... aqueles... daquela coisa lá da natureza, do Raiki, não.. do Raikiri...porra.. já andei com uma garina que tinha a mania dessas ondas... Raiki!! E os gajos são uns budas...acho que é isso... beijam as vacas e tocam sininhos e fazem bailado na relva em vez de ginástica.. curti bués...mas é só para uns tempos.. Ahahah! Quando comecei a sonhar com vacas... mas em bifes e cheios de sanguinho a escorrer, vi que a coisa não era para mim! Bem !!! Mas a tipa.. a tipa lá estava, tipo Cristo, a arfar para o mar, que nem uma doida. Pensei que já tinha topado a cena dela toda ... dei-lhe as costas, mas ainda me voltei para trás.  E ai, meu! Bem!... Meu... tive de dar corda aos calcantes! A cabra da mulher estava de braços para baixo a chegar-se mais para a borda. Com a fronha para o ar...os cabelos todos a voar... parecia uma bruxa.. tive um cagaço.. Por um pouco não a agarrava. Aiiiiiii...
Mas esta agarrei... agarrei... agarrei... Só da outra vez não! Eu queria tanto, tanto Bia... Mas porque é que não fui capaz? Só agora..
E o rapaz, ficou assim, aninhado no colo dela, a chorar baixinho, enquanto Beatriz lhe limpava as lágrimas com os lábios e lhe sussurrava baixinho- está tudo bem... tudo bem...

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

De camarote






- Maria Alice… Maria Alice, Maria Alice, Maria Alice!
 Como foste capaz?! Deste cabo da minha vida! O que vou fazer agora? Estou desgraçado! Essa é que é essa! - Desesperado, não conseguiu segurar-se mais e rompeu num pranto incontrolado, cabeça entre as mãos, estremecendo por entre os soluços.Ao seu lado estava uma cama branca, fria, de hospital e dentro dela, estava Alice. Estava…
- O caraças é que estava!Sem dar conta do que fazia, levantou-se, agarrou-a pelos ombros e abanou-a.
 Acorda, mulher! Queres dar comigo em doido, é? Estás-te a vingar? Fala!
Tás a assistir de camarote.
Alice não se mexeu. Os Olhos grandes, enormes, de um azul metálico, continuavam abertos. Pareciam mais frios do que o costume, fixos num ponto qualquer. Ela não estava ali. Não adiantava.
- E agora? O que é que vou fazer? O que vou fazer contigo? Responde! Tinhas mesmo de estragar tudo…
 Raça de mulher… Raça de mulher….
Quando eu tinha tudo preparado… ia de férias amanhã…
 Ela não me vai perdoar! Não me vai perdoar… não vai! Ia ser tão bom…
-Oh…Maria Alice! Tinha de ser agora, não era?!
 Nem para te matares de uma vez serves, mulher… Deus me perdoe…
Tinhas ido para casa da tua amiga, como tinhas dito… eu ia de férias, voltava e continuava tudo na mesma. Nunca disse que saía, pois não? Tinhas-me lá… Fazias-me aquelas porcarias, lá dos teus cozinhados, eu sentava-me e comia, íamos a casa dos meus pais… dos teus… querias mais o quê?
Porra! Porra! Porra, mulher!
A visita estava a acabar. A enfermeira apareceu a avisar que tinham apenas mais cinco minutos. Olhou para o casal e não pode deixar de sentir pena daquele homem. Estava completamente desesperado. Há dois dias que o via ali, sentado ao lado dela, a chorar, em pranto, com medo de não a voltar a ter. Há muito tempo que não via uma dedicação daquelas. Deviam de se amar muito. Pela sua mente passou um clarão de inveja. Mesmo deitada naquela cama, com aquele ar ausente, aquela mulher tinha aquilo que ela mais queria e que estava tão longe de alcançar: alguém que verdadeiramente a amasse. – Só Deus sabe porque teria ela feito uma coisa daquelas… É daquelas coisas… As pessoas nunca estão contentes com aquilo que o destino lhes dá. Estava ali aquele homem, feito um farrapo, aos pés da cama dela e ela tinha deitado tudo isso fora…
- Então… Tenha calma… Vai ver que tudo se compõe – disse ela, sorrindo, ao mesmo tempo que apertava a mão dele, numa tentativa de o reconfortar.
- Não vai, não vai… Vai lá agora.. Ai a minha vida… Está tudo estragado.
- Vamos, vamos… Vamos lá a animar. O senhor tem de ter calma! E descansar. Como vai depois ajudar a sua mulher? Cansado dessa maneira? Acha que ela gostaria de o ver assim?
- Pois.. É verdade… Ela não o podia ver assim! Ia achar que ele era um banana, um frouxo. Tinha de se recompor, ganhar forças para a enfrentar. Não ia ser mole! Dizer que as férias já eram… Ia cair o Carmo e a Trindade!
- O pior já passou – disse a enfermeira.
- O pior? O pior ainda está para vir…

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Vagando


- Agarrei-te!
-És doida? Estava a ver-te há uma série de tempo. Acho que nem te deste conta! Mas que doida, pá! Andar assim numa cena dessas, à beira da falésia, de braços abertos e tal… Claro que só podia dar numa destas … Uma pessoa escorrega, e tunga… dá com eles lá em baixo. Eheheh…
Ela olhava para ele, olhos sem expressão, sem dizer nada, as lágrimas seguindo o seu curso, escorrendo sem parar, pela cara abaixo.
- É pá!!!! É pá… Tu não me digas que não escorregaste… Mas que cena mais marada, meu…
Sem pensar, ele agarrou-a pelos ombros e abraçou-a. Juntou a cabeça dele à dela e apertou-a o mais que pôde - como não tinha adivinhado?! E logo ele…
Tinha todos os motivos para perceber. A dor do passado ainda estava lá. Não lhe queria mexer.
Às vezes é mesmo assim Só nos permitimos perceber aquilo que queremos. Todos os sinais estavam lá. O alarme tinha tocado. E ele tinha corrido.
Ela continuava em silêncio. Parecia uma boneca, desarticulada.
Não estava ali. Tinha saltado. Sentira o ar fresco na cara, o impulso dos pés e o peso do corpo a cair livre, duna abaixo.
Pairava, no ar, num ponto acima, a observar.
Sentira o rapaz a correr, direito a ela, e a agarra-la, vira a sua expressão de alívio, ouvira a forma como falara com ela, meio a sério, meio a brincar. Apreciara a forma como ele a tinha tomado nos braços e de repente a tinha aconchegado a si, como se ela  fosse dele e fizesse parte dele.
Pairava por ali.
Não lhe apetecia voltar.
Aquele corpo não lhe dizia nada e nada a prendia a ele. Nada, mesmo nada.
Não lhe dera nada.
Pertencia ao passado.
Ela estava livre.
O milagre acabara por se dar.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Milagre


Todos pareciam felizes.Todos por quem passava, desfilavam,bandeiras hasteadas, qual sorriso dependurado, orgulhosamente. Sozinhos, acompanhados, de mão dada ou enlaçados, em câmara lenta, devagar, apressados, a correr. Imperturbáveis. Seguiam o seu caminho, seguros de si, da sua felicidade e o mundo parecia pequeno demais para os conter.
Pobres deles. A felicidade pode ser tão efémera…
Apenas vemos aquilo que os outros nos querem mostrar, e mesmo assim, ainda escolhemos aquilo que queremos ver, o que melhor nos serve.
Era o que tinha feito. Anos e anos a fio. Começara por uma simpatia mutua, uma paixoneta e acabara  num estado de graça. A paixão é isso mesmo. Um estado de graça, de quase idolatração.O mundo mudou de eixo e passou a girar em torno dele. Para ele e por ele existia.
Até aquele dia,  em que sentiu um soco forte na boca do estômago e o chão desapareceu debaixo dos seus pés.
Vagueou, perdida, sem rumo nem sentido. Tentara  levantar-se… mas o golpe tinha sido demasiado rude e violento. Voltava sempre ao chão. Uma vez, e outra, e outra … e mais outra. Cada vez que se erguia recebia novo golpe, mais rude e certeiro do que o anterior.
Por isso, estava agora  ali, a contemplar o mar do Guincho, e a pensar se conseguiria ainda usar a vida que lhe restara.
A taça, lentamente, tinha-se esvaziado.
Não pensava em vingança, para isso era preciso sentir… . Ela não sentia. Estava dormente. Flutuava num estado quase letárgico, à medida que tudo se ia desenrolando à sua volta.
As gaivotas pairavam por cima dela. Conseguia vê-las a passar, rápidas, livres. Lá em baixo, o mar estava bravo, de um azul-escuro esverdeado, ladeado pelo branco da espuma das ondas que se lançavam à força toda contra a arriba. O vento forte fustigava-lhe as faces, criando à sua volta um turbilhão de cabelos, que se agitava a seu belo prazer. Abriu os braços e fechou os olhos com força, concentrando-se. Numa prece derradeira implorou aos céus, mar e vento, a todos as forças que a ladeavam:
- Deixem-me sentir… sentir …
Pedia um milagre.
Deixou-se ficar ainda mais uns instantes assim.
Baixou os braços, abriu os olhos, e sem um pensamento saltou.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Ela





Lá vem ela, lá vem ela – pensava o rapaz, coração aos pulos… - Lá vem ela para aqui… Ui! Segura-te pá! Tens sempre de fazer figura de Tótó… atiras tudo para o chão… Ouve, meu, vê se atinas… Pá… A miúda até… Quem sabe se ela até não me grama. Naaaaa…
Inicialmente ela apenas o criticava e ria às gargalhadas, enquanto ele metia os pés pelas mãos (e metia mesmo, na verdadeira acepção da palavra). Isso deixava-o “ fulo da vida”, danado, mesmo. Mas sem querer, tinha escutado as suas piadas, com as amigas e não tinha conseguido deixar de rir. Ela era um ponto! Ao pé dela era só rir!
Pouco a pouco ela começara a tomar conta dele, devagarinho, insinuando-se como quem não quer nada, chegando-se, mesmo sem o saber. Quando passava por ela sentia o seu cheiro. Não era perfume, era um aroma só dela, impossível de descrever, mas inebriante. Gostava de cirandar à volta dela, para o sentir. Um dia, aproximou-se dela, rondou-a, quase tocando o seu cabelo, fechou os olhos, para o desfrutar melhor… e lá caiu tudo… Mas para surpresa dele, ela já não se riu. Ajoelhou-se no chão, ao seu lado, ajudou-o a apanhar cacos e caquinhos, os dedos quase a tocarem-se. Olhou para ele, olhos nos olhos e sorriu.
Nessa noite, enquanto dedilhava a guitarra e tocava para as ondas, o mar e as gaivotas, arrancou acordes que encheram a noite e ecoaram pelas dunas. Eram notas suaves, que embalavam o vento e que falavam de cabelos esvoaçantes, olhos grandes e risos cristalinos: falavam dela, da rapariga que todos os dias, mais hora menos hora, aparecia na esplanada e da qual não sabia nada, só vagamente um nome.
O nome já poderia querer significar muita coisa… pensava ele … ou talvez não.
Será que por nos chamarmos João, Maria ou Manuel, somos diferentes daquilo que seriamos se fossemos Mário ou Miquelina? Teria Maria Antonieta outro fim, se o seu nome fosse Hermengarda? Ou teria Napoleão virado a cara se a sua Josefina fosse Natália? Não sabia responder… Mas o certo é que lhe parecia que um nome não poderia ser tão grande. O peso de uma pessoa está nas suas acções, nos seus actos, esse é o fardo que carregamos. Pode ser maior ou menor. Quem faz os nomes, são as pessoas e não o contrário. Por isso, para ele era indiferente o nome que tivesse, desde que fosse Ela.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009



Tinha a cabeça encostada ao vidro do carro. Ao fundo via o vai e vem da esplanada.
Como sempre, ele não parava. Era incrível, como conseguia, sozinho despachar toda aquela gente! Não admirava que parecesse desajeitado… devia estar exausto! As pessoas podem ser tão aproveitadoras… aproveitam-se da necessidade dos outros. É que era todos os dias!! Desde manhãzinha…até ao final do dia… e ainda varria, arrumava as cadeiras, mesas, lavava a loiça...
Grande vaca, lá por ser a dona!... Não podia admitir outra pessoa? Mania de querer ganhar tudo de uma vez.
Quase que se sentia envergonhada…Quase, não. Sentia mesmo. O que tinha rido, no início. As coisas que tinha dito! Ela e os amigos… Mas depois… Afinal não era nada assim. Também! …
Não era nada assim, parecia ser o mote da vida dela… Se um dia fizessem um filme sobre ela… chamar-se-ia “ Não era nada assim”. Tinha a mania de se deixar guiar pelas primeiras impressões, e depois era isto. Uma amiga passava a vida a dizer-lhe que as iludencias aparudem… e mais a sério, que o que é hoje, amanhã pode já não o ser… ela ouvia, assinava em baixo, mas na hora H, eheheh… deixava-se levar sempre pelas primeiras impressões, pelos primeiros momentos. Era uma daquelas pessoas, que embora o negasse a pés juntos se fosse preciso, acreditava piamente no “ Amor à primeira vista”, e pronunciava frases do género de … “ bastam-me apenas três minutos, no máximo, para ver se me apaixono por alguém… “com um sorriso sonhador e idiota estampado no rosto. No fundo era uma romântica incorrigível, crédula, bem tratada pelo passar dos anos, que a tinham poupado a desvarios ou dissabores de maior nota…. Ou não seria este o seu discurso.
O rapaz da esplanada tinha mexido com ela. Ia contra tudo aquilo.
De início tinha-o achado ridículo, um disparate personificado… Aos poucos foi descobrindo … não sabia se era por os olhos dele se encontraram com os dela, se era o sorriso que teimava em soltar, se …sabia ela lá…. O que sabia é que todos os dias tinha de lá voltar, à esplanada… para olhar, para o encontrar.
Quando o Verão acabasse… como seria? Ainda não tinha tido sequer coragem de perguntar, se a esplanada continuaria a abrir, ou não… ou se aquele era apenas um emprego de Verão…
E quando tocava ele tocava? Ui… Parecia que o mundo tocava também e o acompanhava. As gaivotas dançavam, as ondas ondulavam. Tudo marcava o ritmo… Sempre. Enquanto ele tocava. Arrastava tudo. Parecia um Tsunami…
Exagero, credo! Se calhar, mal comparado…
Tsunami era ele! Eheheh… Era o que ele tinha feito com a vida dela. Tinha revolvido tudo, de alto abaixo, e o mais engraçado… que não tinha mesmo graça nenhuma, era nem lhe passar pela cabeça.
Tinha vergonha. Não dele, de ele ser um empregado de mesa, mas dela.Achava ridículos, os seus sentimentos. Não sabia como lidar com tudo aquilo. Era demasiado grande para ser solto, demasiado grande para compartilhar e demasiado grande para guardar. Demasiado.
Ela não era ela. Não se reconhecia. Se por um lado rejubilava, por outro definhava.
Onde tudo aquilo iria parar...
Como uma gata preguiçosa, espeguiçou-se, esticou musculo por musculo, arrancou-se a custo do carro. Cá fora já cheirava a Outono e uma brisa fresca temperava o ar.

sábado, 26 de setembro de 2009


Na vida de cada um de nós, mais tarde ou mais cedo, é possível assinalar um período mais conturbado, digno de figurar nos anais da história da família. O meu aconteceu aos quatro anos. Foi com quatro anos que escorropichei copo atrás de copo, abandonados à minha sorte, enquanto os adultos faziam as honras da casa e se despediam dos convivas e foi também por esta altura que provei caracóis, mas crus, apontando, de dedo em riste o pobre do meu primo João, verdadeiramente inocente e enjoado, como instigador deste meu acto e, foi ainda com quatro anos que tirei o nosso carro da garagem. Segundo rezam as crónicas, o meu pai, orgulhoso” da menina dos seus olhos”, ao mesmo tempo que me ensinava a papaguear os números, o abecedário, ensinava-me também o que era um travão de mão, as mudanças, onde ficavam as luzes, os sinais de trânsito e outras coisas, carregando-me no colo, enquanto conduzia. Eu escutava, mãos no volante, de olhos arregalados, calada, bebendo gota a gota, tudo o que ele me dizia. Numa tarde de Verão, após o regresso da praia, para obviar os inconvenientes de tratar de uma criança à mesa, fui a primeira a almoçar, ficando por isso livre para cirandar pelo jardim. Tenho uma vaga ideia de que fui ter com a Benvinda, a criada da minha tia Felisbela, que estava no tanque a lavar roupa. Nessa altura, as máquinas de lavar eram um devaneio dos mais criativos…Abri a porta do carro, estacionado na garagem e sentei-me a conversar com ela. Dona de uma paciência de Jó, Benvinda, adorava-me e aturava estoicamente todas as minhas diabruras e histórias mirabolantes, vestia e despia bonecas, e fazia vestidinhos de crochet para elas, de cores vivas. Era o alvo perfeito para eu esbanjar toda a minha sabedoria recém adquirida… Havia que instrui-la sobre as maravilhas da mecânica. Ela ia respondendo sem ouvir, absorta nos seus pensamentos, dizendo que sim e sorrindo de vez em quando. Foi aí que, segundo ela, me sentei ao volante e sem que ela soubesse dizer como, destravei o carro, que começou a rolar, devagar… Benvinda, num ápice, rompeu numa correria, casa adentro, aos gritos: Oh minha senhora! A menina vem aí! A menina vem aí com o carro! Todas as conversas se calaram, o pensamento era comum: a menina tem quatro anos. A menina vem aí?? Com o quê!? Correram todos para o jardim. Mas a menina, assustada com os gritos de pânico da pobre Benvinda, tinha devagar virado o volante para o muro da casa e encostado o carro. Tudo acabou com um valente ralhete e promessas de jamais voltar a repetir o sucedido. Escusado será dizer, que as minhas lições terminaram.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Domingo no paredão


Domingo.
O paredão fervilha.
Como formigas num carreiro,
Todos correm,
Todos passam,
Sempre, sempre, sem parar,
Pernas para que te quero,
Braços pelo ar,
Sempre, sempre,
A correr ou a caminhar…
São crianças, jovens e adultos, idosos…
Acompanhados, sozinhos,
Sempre, sempre sem parar…
Passa o domingo.
Chega a segunda…
O corpo dói…
Dói, dói, sem parar…
Mas domingo…
Domingo lá estarão…
Outra vez, e outra vez…
Sempre, sempre, sem parar.
Pelo paredão,
A correr ou a andar.
Obedientes, como formigas a marchar.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Dias de Sol e mel.


Com o mês de Setembro, começa pouco a pouco a azáfama do regresso à Escola. Os pátios, onde antes saltitavam melros, perseguidos aqui e ali por um gato mais afoito, vão sendo “conquistados” a contragosto tanto por alunos como por professores, já saudosos dos tempos áureos que em breve irão acabar.
No meu tempo não era assim. Começávamos férias em meados de Junho que se espraiavam até princípios de Outubro. A família deslocava-se em peso para as Azenhas do Mar. Kispos grossos e camisolões de lã faziam par com fatos de banho e t-shirts, arrumados com afinco dentro de grandes malas. O meu cão seguia sempre ao meu lado e aos pés da minha mãe ia a gaiola do canário. Como não enjoava, fazia muitas das vezes a viagem deitada no banco de trás, o que valeria aos meus pais, se estivéssemos nos dias de hoje, uma valente multa. Sentia-me sempre rejubilante. Para mim, as Azenhas significavam Liberdade. Mal lá chegava vestia “ o uniforme de trabalho” como lhe chamava o meu tio João, deixava os vestidos e sapatos de circunstância e passava aos calções e t-shirt desbotada. Com eles subia pinheiros, andava de bicicleta, corria, pulava, ficava peganhenta das “ caçadas “ aos pinhões, e regressava à noite ensanguentada da” apanha da amora”. De manhã, invariavelmente, íamos para a praia, depois das compras na praça. Tínhamos uma barraca alugada, durante todo o Verão, de lona grossa, riscada de amarelo e azul, que se revelava de extrema necessidade nos dias de cacimba. “ Ao meio dia, ou carrega ou alivia…” era um dos lemas da minha tia Felisbela, pródiga em provérbios. Seguindo o mote, lá rumávamos à praia, de camisolas grossas. Nós ficávamos a cabriolar pela areia, até o frio e a humidade triunfarem, levantarmos arraiais e seguirmos até novas paragens: o café restaurante “Casino”.Era aqui que muitos dos almoços e comemorações se faziam. Pertencia ao Sr. Ramos e ao Sr. Silvério, dois galegos, personificações vivas de Dão Quixote e Sancho Pança… pelo menos era assim que eu os via… Em frente existia um parque infantil com um escorrega, cavalinhos e baloiços… E que baloiços. A nossa maior ambição era andar cada vez mais e mais e mais depressa, até conseguir dar uma volta completa. Às vezes, quando chegava a casa, deixava-me cair em cima da cama, fechava os olhos e a sensação continuava lá … aquele vaivém saboroso, que embalava sonhos, risos e felicidade e em que nada poderia correr mal.
Perto existia a geladaria da “ Julinha, onde se vendiam uns gelados artesanais, segundo uma receita mantida no meio de grande secretismo e trazida de Itália. Eram doces e saborosos.
Do outro lado ficava a farmácia do Sr. Alves. Tinha mesinhas feitas por ele para todo o tipo de maleitas, mas a “piece de resistance “ era um bronzeador, à base de tintura de iodo e óleo de coco, vendido em garrafinhas de martini, tampado com uma rolha de cortiça. Tinha de ser colocado no tabelier do carro para derreter, antes de se usar. Era muito cobiçado e esgotava rapidamente. Ainda recordo o cheiro e a cor que deixava nas mãos. Era também o Sr. Alves que fazia questão de nos medir. No início do Verão pedia-nos para nos encostarmos a uma das paredes, cheias de riscos, onde estavam os nossos nomes. No final do Verão a cerimónia repetia-se, seguida de grandes elogios e felicitações, mesmo que o saldo não fosse assim tão animador.
E havia o cinema. O cinema da Praia das Maçãs, um pré-fabricado, com uma maquina que protestava durante todo o visionamento e umas cadeiras de pau, todas agarradas umas às outras e que chiavam cada vez que nos mexíamos. Eu gostava especialmente de ir ver os filmes de terror. Levava o dia a melgar o meu primo João, até que este se rendia, e ia comigo, às sessões da meia-noite, dormindo a sono solto, enquanto eu bebia “ As noivas de Dracula”, “Os Zombies atacam” e afins.
Com o Agosto vinha a época das festas populares, procissões e romarias. As ruas engalanavam-se de arcos e luzes. Vendiam-se algodão doce, ferraduras e bolos de erva-doce, farturas e pão com chouriço. Do recinto da festa, chegavam em grande algazarra, as vozes roufenhas dos cantores na berra desse ano, saídas das cassetes cada vez mais gastas dos carrinhos de choque e dos carrosséis. E o fogo-de-artifício, e o espectáculo dos “Asas de Portugal”que nos punha a todos deitados na praia, a olhar para o céu… E as garraiadas, com vitelas esqueléticas, a fugir espavoridas de adolescentes imberbes que tentavam a todo o custo provar a sua masculinidade às moçoilas belas e roliças da terra.
Agosto levava os pais de volta para Lisboa e deixava-nos entregues às mães. Saiam de manhã e regressavam à noite. Para o meu pai e o meu tio, a vinda era uma bênção. Abandonavam a capital com um calor tórrido.
- Passando Ranholas entramos no paraíso, nem vos passa pela cabeça a sorte que têm - dizia o meu pai, sorriso estampado no rosto, enquanto nós o olhávamos de cara fechada, sentados ao pé da lareira que estivera acesa todo o dia.
Foram dias plenos, cheios, vividos intensamente, saboreados gota a gota.
Dias de Sol e mel.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009


Foi andando devagar, a areia entranhando-se pelo tecido dos ténis, conquistando espaço e formando uma palmilha moldável e fofa, que oscilava a cada passo.
Finalmente o carro. Descalçou-se, tentou em vão livrar-se da areia, ainda por cima sem toalha… atirou com os ténis para o banco de trás, deixou-se escorregar pelo assento da frente e ficou ali, mãos apoiadas no volante, chave na ignição, sem saber se deveria arrancar ou não. Precisava pensar…
Tudo ali, apesar da estrada das pessoas e dos carros, conservava um certo ar vivo, em movimento constante e selvagem: as dunas onde crescia uma vegetação rasteira e resistente, as flores singelas, o mar bravio, o vento.
Cada local tem uma energia e personalidade próprias. O Guincho é dono de uma aridez e liberdade indomáveis, algo que toma conta de nós e nos contagia. Um sítio assim é capaz de nos levar a actos irreflectidos e de nos arrebatar. Pensando bem, poderia ter confundido tudo. A magia poderia não estar, ou alguma vez ter estado naquela esplanada. Podia ser o próprio local. Esquadrinhava a mente de cada um e deleitava-se a compor sinfonias de emoções, ânimos e desânimos, brincando devagar com as almas dos mais incautos, levando-os por caminhos esconsos, manobrando e manietando… Ou poderia ser algo ainda mais linear. Poderia estar nela. Era ela quem ali rumava quase todos os dias. Eram os seus olhos que bebiam a paisagem e observavam quem passava; era ela quem conjecturava, arquitectava, criava cenários e ligava as pessoas com quem se cruzava com laços de seda, urdindo uma teia multifacetada. Era ela.
Não era a magia que se tinha esgotado. Era ela. Pegando numa tesoura, cortou, cuidadosamente, todas as laçadas, desfez a teia e partiu a voar.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

O que é hoje...


Tinha de lá voltar … desta vez sem a confusão das gentes, da azáfama dos pedidos, dos gritos das criancinhas e das mães. Longe de tudo isso. Por isso tinha escolhido aquela hora em que as cadeiras descansavam, desbaratadas,atiradas.
Apenas o vento rondava, emboscado por entre as bugigangas, saltando à desfilada, numa onda gelada e salgada, que arrastava areia e tudo o mais que se intrometesse.
Desceu a duna devagar, sem pressas, respirando fundo, como que a buscar e reter toda a essência do local.
Parou. Olhou à sua volta. O Sol despedia-se sem grande aparato, mas a luz… a luz inundava tudo, pintando tons laranja aqui e além, principalmente na água que estava na praia. A maré estava vaza. Algumas pessoas deambulavam ainda por lá; o dia fora quente.
Voltou-se uma vez mais para a esplanada.
Tudo estava lá. A casa, as cadeiras e espreguiçadeiras… as mesas… a decoração grosseira… tudo … e no entanto…
Em qualquer ponto do tempo o momento tinha-se perdido, algo se desconectara. A esplanada outrora especial, voltou a ser igual a outras tantas esplanadas que por aí existem. A magia tinha acabado. Despertara, voltando a vê-la como todos os outros a viam: uma barraca de madeira, gasta e desbotada ao pé da praia, sob um palanque.
Sentiu-se desolada, e o frio pareceu-lhe ainda mais frio, percorrendo-a de alto abaixo. Tinha feito tantos projectos. Precisava dela para terminar o que tinha pensado…. Sem ela nada faria sentido…
Concedeu-lhe ainda um último olhar, cheio de promessas por cumprir, planos por concretizar, daqueles em que já sabemos o que vai acontecer, mesmo antes de pensarmos… Provavelmente voltaria ali, mas nada seria igual.
O que é hoje, amanhã pode já o não ser … Até mesmo uma esplanada.

terça-feira, 11 de agosto de 2009


Parece-me um daqueles dias em que tudo já foi feito, escrito ou dito.
Em qualquer canto do mundo, alguém estará a pensar o mesmo que eu…
Um bando de deuses esfaimados, deleita-se a observar, fazem apostas sobre este ou aquele passo, se vou por ali, se fico aqui…se reajo assim, ou se pelo contrário me quedo com os meus erros, pronto para lançar flechadas, rolar pedras, semear uns contratempos, distribuir recompensas e castigos a seu belo prazer. Sou uma marioneta. Um boneco articulado, ao qual vão dando corda. Vou avançando, passo após passo…primeiro devagar… depois cada vez mais depressa, mais depressa, cada vez mais confiante, feliz. É nessa altura que fico sem ar. A laçada quase que me sufoca e fico suspensa, sem espaço e sem corda. Um esgar de desdém desenha-se nas suas faces.
Banal.
Uma vez li em qualquer lado que a nossa alma se terá dividido em inúmeras partes, desbaratadas ao vento, e que podemos reconhecer uma parte de nós, da nossa alma por um brilho, uma luz, algures numa certa posição, na cabeça, luz essa, claro, que não se anuncia assim sem mais… só aparece para alguns. Para os iniciados. Soltos por esse mundo fora, andam pedaços da minha alma primordial, una, pelos quatro cantos, desesperados … vagueando, sentindo-se incompletos, à espera que eu os reconheça e entabue uma experiência verdadeiramente cósmica… O que em última análise me faz pensar, que poderemos cruzar-nos vezes sem conta com pedaços de nós, sem nunca nos dar conta disso mesmo. Pode ser qualquer um… desde o colega de trabalho, ao vizinho do lado, o empregado da loja….ou pode não ser ninguém. Pode até acontecer que nunca nos cheguemos a cruzar connosco mesmos, durante esta vida. Assim já compreendo porque se diz: “ Estou à procura da minha alma gémea.” Foi algo que sempre me intrigou. Como se pode procurar aquilo que nunca se teve, ou que não se conhece? De que não se faz a mínima ideia? Corremos o risco de sacralizar o inatingível, de transformar a procura numa verdadeira demanda pelo Graal. E para muitos é isso mesmo. A conquista, namoro são efectuados segundo todo um ritual, submetidos a provas, verdadeiros ritos iniciáticos. A paixão deixa de ter espaço para germinar, dar frutos. Espartilhada como está, dentro de estreitos limites, acaba por sufocar, esmorecer e por fim morrer.

sexta-feira, 31 de julho de 2009


Hoje não venho contar histórias.
Senti-me perdida …
Vim aqui à procura…
No meio das palavras, sentimentos e emoções…
Procurei…
Esquadrinhei
Cada cantinho…
Revolvi frases…
Arredei pontos finais…
Desviei reticencias…
E nada…
Nada…
Até que te vi a ti …
E eu ali…
Bem juntinho.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Harley


-OLÁ!!! - Adivinha quem eu sou… disseram-lhe, tapando-lhe os olhos com força…
- Nem preciso de me esforçar… Eheehhe… A única pessoa que me continua a fazer isso és tu! Quando é que cresces? – Perguntou ela a rir.
-Ora seja bem aparecida! Até que enfim! Sim senhora! O Amor faz sempre bem! - A amiga atirou a mala para o chão e sentou-se de rompante ao seu lado, sem cerimónias.
- És uma desmancha prazeres… - resmungou ela - custava muito fingires que não me conhecias? Ah! Ah! Ah! Realmente… Estás bem?
Desde miúdas… Conheciam-se desde miúdas. Era a sua melhor amiga. Se havia pessoa neste mundo a quem não podia mentir era a ela. Nem o conseguia. Bastava olhar. Mesmo que fosse de soslaio… e às vezes nem isso. Comungavam de cumplicidade e sintonia, o que lhes permitia dispensar o uso da palavra. Para muitos era uma telepatia. Mas ambas sabiam que não era assim. Conheciam-se há tanto tempo… era uma dádiva. Uma dádiva do tempo.
- Estou a ver…
- Então ainda bem. Ela baixou os olhos.
- E tu? Que conversa era aquela?
- Não sejas assim… Tem calma… É então este o teu cantinho secreto… És mesmo uma safada… Queria-lo só para ti?! É fantástico! Nem parece que estamos cá. Parece o paraíso – disse a amiga, abrindo os braços, fechando os olhos e sorvendo o cheiro forte da maré vaza – é de facto incrível. E sem sairmos daqui. Só mesmo tu! Continuas com aquela mania…
Era. Continuava com a mania de sair de carro à descoberta, sem destino nem direcção. A amiga costumava dizer que ela era uma Motar, uma Harley… mas sem mota. Metia-se na estrada e rumava para parte nenhuma. Sem plano ou mapas. Às vezes limitava-se a conduzir, o dia todo, quase até ser noite e voltava. Outras, metia-se por estradas e estradinhas, empoeiradas, cheias de pedras soltam e buracos, e era assim que os descobria, aos seus santuários, os seus cantinhos, como a amiga lhes chamava. De todos, este era um dos seus eleitos.
- Espera até pedires qualquer coisa …. Ah! Ah! Ah!

quarta-feira, 22 de julho de 2009

De volta à esplanada


De volta à esplanada.
Estava a tornar-se numa habitué… Ultimamente, cada vez que pensava em sair ia parar, invariavelmente, àquele local.
Era calmo, tirando o empregado, ehheeh …(mas esse até dava um certo colorido à coisa) e tinha uma vista linda de morrer, juntando o facto de ser suficientemente desconhecido para lhe servir de refugio e fugir a todos os que gravitavam à sua volta e a enfadavam de morte.
Tinha até uma casa branquinha, no alto.
Fazia-lhe lembrar, uma história que a mãe lhe contava, de uma casa da praia. Como era mesmo? … Já não se recordava bem… o início era qualquer coisa como:” A casa da praia era uma casa pequenina, montada no cimo de um monte escarpado”… era isso... Não sabia o que era escarpado na altura…. Lembrava-se bem, da cara da mãe, compenetrada, olhando-a nos olhos, a pensar na melhor maneira de a fazer entender, escolhendo bem as palavras e falando devagar… sem pressas. Encontrava sempre uma imagem qualquer, um exemplo prático que esclarecia tudo. Era assim a mãe. Sabia como a fazer sentir-se importante, o centro do universo. Há muito tempo que não se sentia assim…E as histórias!! As histórias eram cheias de pormenor. Parecia que tinham um íman, que a ia puxando, devagar, bem devagarinho, e a ia enredando… já não importava se sabia ou não o que queria dizer esta ou aquela palavra. Pouco a pouco, deixava mesmo de a ouvir … sem dar por isso, entrava com ela de mãos dadas naqueles mundos, e fascinada, assistia a tudo, como se de um filme se tratasse. Às vezes ia até mais longe e fazia de heroína… Por isso, passados todos aqueles anos, ainda se lembrava, das histórias da mãe… doces e ternurentas… gostava muito desta, da casa da praia…
A casa da praia era uma casa branquinha, pequenina, montada num monte escarpado no cimo de uma falésia. Tinha quatro janelas, viradas para o mar, pintadas num verde já desbotado, e uma porta, daquelas de janela na parte de cima, e um enorme batente em forma de cabeça de cão. O cão tinha uns dentes gigantescos, arreganhados e fazia medo pegar-lhe. Parecia que estava ali a tomar conta de tudo e pronto a saltar sobre quem lhe tocasse. Era preciso muita coragem para o fazer e talvez por isso, as visitas à casa fossem tão poucas.
Uma pequena cerca, também do mesmo verde, rodeava-a e os seus donos tinham construído aí o jardim possível, naquela terra de areia, feito de cactos e de pedras roliças e brancas. Por cima da casa branquinha, as nuvens passavam devagar, acenando, o Sol sorria para ela acariciando-a,com as suas mãos, feitas de raios quentes e as gaivotas tinham criado o hábito de a cumprimentar logo pela manhã. A casinha a todos sorria, deliciada, contente por ser quem era e por estar ali.
Em baixo e a toda a volta, só se avistava o mar imenso - no Inverno bravo e revolto e de uma calmaria azul transparente no Verão.
Ao seu lado viviam umas canas que todos os dias se entretinham a dançar, num vai vem morno, ora para cá, ora para lá, mas que de repente enlouqueciam e esbracejavam sem parar, se o vento calhava em por ali passar e as desafiava. Eram umas tontas. Umas Marias vai com o Vento, e não se podia confiar nelas. Tanto diziam a tudo que sim, como mudavam de ideias e era não, não e não.
Os dias iam passando, a calma apenas perturbada pela passagem a toda a brida de algum coelho que por ali aparecia e que partia em desfilada. Andavam por ali, roendo um pauzinho aqui, um rebentinho tenrinho ali. A pouco e pouco iam-se aproximando dela, até que de repente, era vê-los a partir em louca correria. A casinha não sabia bem porquê, mas tinha para si que só poderia ser coisa daquele cão mal-humorado…
Eheheh …
Sempre gostaria de saber se aquela casa branca também seria assim, como a da história da mãe…
Ainda a pensar na casinha, tomou o caminho da esplanada e sentou-se no seu lugar preferido – uma mesa mesmo voltada para o mar, com a casa branca perfilada.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Um amanhecer diferente

Há muito, muito tempo, horrores dos horrores,pelo menos para as gerações de agora, existia algo impensável: a televisão a cores era ainda uma adolescente roliça, enrubescida com as cenas mais explicitas que ela própria passava e que eram exibidas,imagine-se, tão somente em dois canais. Eram tempos dificeis, em que as famílias se reuniam ao redor de uns enormes e robustos caixotes, chamados televisores e assistiam excitadas a toda a programação, com excepção das camadas mais novas, dispensadas ao soar do mais odiado papagaio da história, " O Tico-tico", personagem do " Vamos Dormir", que sem dó nem piedade apagava a luz. Nessa altura, por esse país fora, as crianças eram recambiadas para a cama, porque " Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer". Não valia a pena discutir. Nem nos passaria pela cabeça tal coisa. Gente pequena não botava discurso nem dava opinião. Era assim, porque.. era assim!Estava dito. A emissão prosseguia, com concursos, shows de variedades e festivais, dos quais sobressaia de longe " O festival da canção", e acabava por volta da hora a que hoje em dia qualquer pessoa que se digne a sair à noite e pretenda alguma animação o faz: por volta da meia noite. Nesse tempo, tudo era apreciado, comentado e degustado com paixão . Era uma verdadeira devoção, a qual não deixava escapar nada, principalmente os anuncios. Lembro-me de um em especial...
que fez as delícias de muita gente, embora já de uma época posterior..
Para recordar e sorrir...


segunda-feira, 13 de julho de 2009


O rapaz passou, bamboleando-se ao som de uma música só sua, atirando pontapés numa pedra e levantando uma onda de poeira que o acompanhava e envolvia. Ela viu-o passar, de dentro do seu carro e pensou, sorrindo – lá vai o desajeitado. Até a dar pontapés nas pedras é sem jeito! Que poeirada…
Tinha entrado no carro, metido a primeira, indiferente a tudo, meio enfadada, meio tudo, meio nada, pronta para arrancar. Levantou os olhos, olhou em frente e ficou sem respiração. O Sol tinha acabado de se pôr, dando lugar ao romper da noite, a um crepúsculo de tons escuros e fortes, contrastando com a auréola viva dos últimos raios de luz, numa amálgama de azuis-escuros e fuchias. Tudo parecia calmo, aquietado. Os seus olhos encheram-se de lágrimas e sentiu o coração a estoirar. Era lindo. De uma beleza singular, perfeita. Uma sensação de plenitude foi tomando conta de si. Era como se as forças da natureza e do universo se tivessem conjugado, juntando esforços, oferecendo-lhe um espectáculo em que a espectadora era ela e só ela. – É um lugar-comum – pensou ela – mas se morresse agora, morreria feliz, em comunhão, morreria com um sorriso nos lábios.
Foi um instante mágico.
O crepúsculo é conhecido por isso mesmo.
Sem cerimónias tudo acabou. A noite caiu, de supetão. Embora fosse Verão, um ar frio e húmido reclamava a praia. As noites eram frias ali. Estremeceu, arrepiada. Suspirando voltou a descer à terra. Olhou-se ao espelho retrovisor, alinhou uma madeixa de cabelo em desalinho, deu à chave, pôs a primeira e arrancou.

sábado, 11 de julho de 2009

Lusco fusco


Lusco fusco.
Aquela era a melhor hora do dia. A azáfama finalmente findara.
Tinha acabado de arrumar tudo. As cadeiras e as mesas estavam guardadas, as portadas fechadas. Já tinha despachado a miúda da cozinha… grande melga aquela. A pita até tinha graça…Eh! Eh! Eh! Dava cada repostada… mas era uma pitinha ainda… Nada de confusões.
The show is about to start… Ta, na nan nan !!!! Ladies and gentleman… your attention please… From the esplanaide da praiaide especially para voceses..ehhehehe
O público era sempre o mesmo. Umas gaivotas retardatárias que por ali esvoaçavam , meias loucas, uns pescadores desesperados… só alguém desesperado por sair de casa e fugir do aconchego do lar poderia querer fazer o figurão de ficar plantado no meio de uma praia, ao relento, no escuro, pegar nos restos, meio apodrecidos de uns míseros bivalves, empala-los num anzol, e ficar agarrado a uma cana, horas a fio, na vã esperança, de que um ainda mais desesperado , tonto, tonto peixe , escorregasse e caísse na esparrela.
Era o que se arranjava.
Pegava na viola e começava a dedilhar. As gaivotas, safadas, parecia que adivinhavam e tratavam de bater em retirada. Os outros...os outros não tinham para onde ir, resmungavam vitupérios entre dentes, mas lá iam ficando. As suas mãos começavam devagar, a acariciar as cordas, como que a sentir a sua tensão e encontrar na vibração suave que iam produzindo a inspiração. Depois fechava os olhos e deixava-se ir, embalado pelos sons que ia arrancando. Ficava assim horas. Até que o frio e a humidade da noite se iam entranhando nele, reclamando a calma e o silêncio e se encarregavam de o expulsar.
Atirava com o casaco para os ombros e lá ia, para casa, devagar, dando pontapés nas pedras e sonhando, ao luar.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

- Vou à terra!


Ontem pegamos nos carros, saímos de Cascais e rumamos em direcção à “terra”. Fomos a Lisboa.
Quando era miúda, tinha uma série de colegas que orgulhosamente, embandeiravam em arco, boca cheia e diziam: - Vou com os meus pais à terra! Aí começavam os relatos da partida: arrancados da cama de madrugada, enfiados no carro a rojo e partindo em desfiada, pela calada da noite ainda, ou quase ao romper da madrugada. Seguiam-se peripécias rocambolescas, histórias de babar… regressavam como tinham partido, de noite e rodeados de chouriças, couves, galinhas, coelhos, viajando à solta dentro dos carros, dormindo a sono solto e despejados nas camas, sonolentos e birrentos. Nós ouvíamos, soltávamos uns bitaques sarcásticos, apelidávamo-los de bimbos e saloios, mas secretamente, roíamo-nos de inveja por não podermos também gozar de tal sorte. Tínhamos as “Férias grandes”… e como eram grandes naquele tempo. Começavam em meados de Junho e espraiavam-se pelo Verão fora, entrando por Outubro, e lá para dia quinze regressávamos à lufa-lufa das aulas. Eu saía de casa e ia para as Azenhas do Mar. Mas não era a mesma coisa… Não podia nunca dizer que ia “ passar as férias na terra”.
Na Marginal enquanto me deixava conduzir pela cadência mole do trânsito, dei por mim a pensar na minha infância e nas idas à Baixa, no Chiado daqueles tempos, no Grandela, no barulho que o chão de tábuas corridas fazia, ecoando; nos pátios dos corredores centrais, que faziam as minhas delícias, cheios de todos os tipos de guloseimas, vendidos em pacotinhos riscados de rubi, do sabor das pastilhas de mentol e de uns quadrados de açúcar de um vermelho carnudo e generoso… do expositor das longas cabeleiras louras, ruivas e morenas…Da máquina de pipocas que havia na Rua do Carmo e da excitação que era colocar lá uma moedinha e ver como elas apareciam rebolonas e apetitosas… do cheirinho das bifanas, que se soltava das tascas, e se enrolava no meu nariz, atraindo-me que nem um íman, obrigando a minha mãe a entrar, cheia de vergonha, com grande consolo meu… e do Tejo, da Sé… dos Elevadores, dos Jardins, dos Miradouros…
Foi aí que caí em mim. É certo que me faltava a azáfama da partida, o calor dos preparativos … mas finalmente, ao fim de todos estes anos, também eu poderia dizer …
- Vou à terra!

quarta-feira, 8 de julho de 2009

" Falling Slowly"

I don't know you
But I want you
All the more for that
Words fall through me
And always fool me
And I can't react
And games that never amount
To more than they're meant
Will play themselves out

Take this sinking boat and point it home
We've still got time
Raise your hopeful voice you have a choice
You've made it now

Falling slowly, eyes that know me
And I can't go back
Moods that take me and erase me
And I'm painted black
You have suffered enough
And warred with yourself
It's time that you won

Take this sinking boat and point it home
We've still got time
Raise your hopeful voice you had a choice
You've made it now

Take this sinking boat and point it home
We've still got time
Raise your hopeful voice you had a choice
You've made it now
Falling slowly sing your melody
I'll sing along

Glen Hansard Marketa Irglova Once Academy Audition LMAO XD
URL







Para ti

terça-feira, 7 de julho de 2009

A esplanada IV


Gostava tanto de partir – pensava a mulher, sentada ao pé do marido, que continuava imóvel, rosto fechado, olhos no vazio, - Poderia muito bem ser num destes barcos que passam, não queria nem saber o destino… Qualquer lugar seria bom, desde que fosse. Poderia ser uma oportunidade.
- Gostava tanto de partir! Poderia ser num desses barcos que passam. Até nem me importava muito do destino… desde que fossemos!
O homem voltou a cabeça, e respondeu-lhe em tom sarcástico.
-Quê?! Barcos? Tens cada uma, tu… Sabes perfeitamente que não me interessam barcos, saídas, passeios… devias estar contente com o que tens. Não te chega? Queres mais, é? Não vamos já para a “terra”? Raio de coisa… - Cruzando os braços, voltou a fundir-se com a cadeira e reassumiu a pose anterior. Ela afundou-se ainda mais. – Gostava tanto de me afundar… de entrar no mar e andar, andar sempre sem parar, até não ter pé e me afundar de verdade, tornar-me azul, água, sal. Ficar. Só. Deixar de ser e de sentir. De me sentir assim, apartada, a esvaziar, a sangrar. A sangrar por mim, por ti, por nós. Gostava de deixar de te sentir, a ti que estás aí e que já não me vês. Gostava de te arrancar da minha pele, de mim. E o que eu não dava por um sorriso teu…
Ele fitava o horizonte. E pensava nela a entrar no mar, braços abertos, dedos a tocar a água ao de leve, raspando devagar. Ela era tudo para ele. Não estava ali. Estava com ela. Sempre e só com ela e para ela. Não era o horizonte que via. Via-a a ela, sorrindo. A figura desvaneceu-se subitamente…
- Está a ficar frio, não está? Com o por do Sol é sempre assim… fica mais frio – disse a mulher em tom neutro, só para quebrar o silêncio.
- Está frio está! Até se me gela a alma...

sexta-feira, 3 de julho de 2009


Para ler e pensar...


Show business
José Pacheco| 2009-03-09

A ética da alteridade está ausente nos lugares onde, pavlovianamente, alunos memorizam a resposta certa, sem chegarem a saber porque é aquela a resposta certa...
Concordo com o mestre Agostinho, quando ele diz que as instituições sempre se corrompem e acabam por ser inúteis. A instituição Escola arrasta a sua degradação pelos caminhos do ridículo e da desumanização. O último exemplo de degradação colhi-o numa revista, onde li esta pérola de "jornalismo educacional":

Prender a atenção de dezenas de jovens que passam horas a fio entre sebentas é um desafio e tanto. Para manter os alunos atentos, professores cantam, tocam e simulam. Esses professores são disputados... e estes novos bardos da pedagogia...

A escola dita tradicional ultrapassou, há muito, o nível do absurdo. Mas parece que poucos disso se apercebem. Chegámos ao tempo do show business pedagógico. Dê-se a uma geração de hedonismo exacerbado os conteúdos sob a forma de rave, porque, depois de a imbecilidade se ter travestido de pedagogia, nada mais poderá ser inventado para disfarçar o drama. Embalados por canoros mestres, os jovens vão sobreviver mais facilmente no "salve-se quem puder" egoísta, que lhes poderá render o acesso à universidade em detrimento do acesso do outro... que vai cantarolando ao seu lado. A ética da alteridade está ausente nos lugares onde, pavlovianamente, alunos memorizam a resposta certa, sem chegarem a saber porque é aquela a resposta certa...

Referindo-se às escolas do século XIX - que, mais data show menos pau de giz, em nada diferem das escolas que temos no século XXI - Stefan Zweig escreveu: Um exército formidável de guardiães disfarçados de professores organiza-se para roubar à juventude a sua espontaneidade e a sua alegria. Nesta época, uma pedagogia maldita, à custa de meios artificiais e anti-naturais, afasta os jovens de toda a sinceridade. Uma geração de pedagogos sem conhecimentos faz um mal inapreciável à juventude. No século XXI, resta saber até quando as escolas irão enfeitando a sua falência com frivolidades, infantilizações metodológicas e outros disfarces.

A jornalista que assina o artigo do qual extraí as citações conclui: O ensino médio exige muito dos estudantes, e não podemos ficar só no decorar. E eu compreendo a lógica: um absurdo é amaciado com outro absurdo: o show business.

A pobre jornalista não tem culpa dos disparates que escreveu. Não é pedagoga, nem tem obrigação de saber que, tal como nos diz Apel, ciência não é acumulação de saber cristalizado, mas inovação em processo. Ou o que nos disse Tchékov: "Os homens inteligentes querem aprender; os outros querem ensinar".

Ainda no referido artigo, uma estudante que pretende cursar Medicina exclama: Ficamos curiosos para saber que música o professor escolheu e que ponte vai fazer com a matéria! A estudante está curiosa e eu estou preocupado com os médicos que irei encontrar pelo caminho, na vida que me resta. Mas, se é verdade que, escutando Bach e Mozart, as vacas produzem mais leite, e se os pastores de certas igrejas seduzem os crentes com "shows de fé", porque não transformar as escolas num permanente festival da canção? Resultará? Não esqueçamos que, no conto "O Flautista de Hamelin", é pela música que o flautista seduz os ratos e os arrasta para o abismo...

Se o sábio Salomão disse que respondêssemos aos loucos conforme sua loucura, talvez possamos aplicar a essas vedetas do show business escolar aquilo que Nietzsche, sarcasticamente escreveu: O professor constitui um mal necessário. Afinal, é inevitável que os intermediários desvirtuem, quase sem querer, o alimento que transmitem.

In Aprendiz de utopias

quinta-feira, 2 de julho de 2009

A esplanada III


Magoou-se? - Perguntou ela, virando-se para trás e agarrando o momento - quase que lhe acertava na cabeça!! O que não poderia ter acontecido… O homem parece que é parvo…
- Pois! – olhos bem bonitos os dela…- Era tudo o que eu mais precisava! Depois da noite de ontem… Ela fitou-o entre o curiosa, e o expectante, lançando ondas de sedução e charme, sorriso brincando e pensando de si para si que quando menos se esperava o destino se encarregava de presentear com novas e promissoras possibilidades…
- Sei bem o que isso é… - a mão brincava com o colar – também tenho andado em maré de azar...
– É…- disse ele, sorrindo, enquanto pensava em como ela fazia jus ao provérbio! “ Não há bela sem senão”. O seu faro nunca o enganava. Esta era muita morena por fora, mas não podia ser mais platinada. Conhecia o tipo. E definitivamente, paciência era algo que não tinha… um trovão ribombou na sua cabeça, levando-o a franzir os olhos de dor… muito menos num dia como aquele.
… - Completamente disparatado, nem sei como lhe deram emprego aqui! A mim…. – Continuava ela, palrando sem dó nem piedade, num verdadeiro tropel verborreico, entusiasmada, pensando já num passeio à beira mar, pezinho brincando na água, um vinho… ou mesmo quem sabe …. Um jantar! Ele parecia mesmo interessado… – …comigo era mesmo assim, rua! É que… parou de supetão. Estava a falar para o vazio. A cadeira antes ocupada pelo rapaz estava vaga. Esticando-se na cadeira ainda o conseguiu ver, de costas e sem nunca olhar para trás a procurar o carro, no parque de estacionamento, tirar as chaves, meter-se no carro e a desaparecer, desaparecer… até se confundir com a estrada.

terça-feira, 30 de junho de 2009

A esplanada II


Humm… aquela gaja é sempre a mesma coisa. Mete-se em caldeiradas do caraças, faz-se toda… Ah! Ah! Ah! Está à espera do quê?! Do príncipe perfeito, enrolado em papel celofane? E se calhar com um anélito no bolso, não? Eh! Eh! Eh! … Ela há cada uma! Enfim… -Não contes nada a ninguém! Por favor! - Deve ser por isso que foram só sete chamadas… Todas a falar dela… E dele. …- És a minha melhor amiga! Não conto a ninguém senão a ti! … Nota-se! Mas ela lá sabia, as linhas com que se cosia.
Melhor amiga! Os melhores amigos não se anunciam. Não precisam. São-no, independentemente de falarmos ou não. São aquelas pessoas com as quais estamos e basta estar. Podemos estar e não falar, não fazer nada. Dão-nos liberdade para isso e para muito mais. Ela sabia lá o que era “melhor amiga”. Para ela era tudo, farinha do mesmo saco. Eram todos amigos. Mal acabava de conhecer um desgraçado qualquer e tunga! Amigo! Prazer… Amigo! Oh Amigo…
Mas este Sol está tão bom… pensava ela, deixando-se acariciar pelo calor morno do Sol em fim de tarde. Ia passando um pé pela perna, devagar, espreguiçando-se discretamente e relembrando… tinha-se vestido dele, como uma segunda pele. O cheiro ainda estava ali, colado. Esquecendo-se onde estava, voltou a espreguiçar-se que nem uma gata, usando cada músculo do corpo, esticando-se muito devagar, para depois, ainda mais devagar, relaxar; o esboçar de um gemido de prazer abruptamente decepado por um solavanco na mesa. Abriu os olhos com irritação. Embaraçado, ele esforçava-se por passar a estado gasoso, confundindo-se com o ar, mas os olhos faiscantes dela eram o suficiente para o paralisar.
– Uuups… Eh! Eh! Eh!- babulciou ele- ... Desculpe.... Foi a querer!! Aiii! Foi sem entender!! Poças! Foi sem intenção. … Até que enfim. Estava a ver que não! - Os olhos dela continuavam fixos nos dele, toda ela fervendo, em ebulição.
– Mais uma vez, desculpe. Deseja mais alguma coisa? - Nervosamente tentava limpar a mesa, provocando uma onda de devastação de chávenas, copos, colheres, que se iam estatelando no chão, com estrondo. Voltou a encara-la. E ela ria. Ria às gargalhadas.
– Mas é hilariante… a trabalhar assim vai levar o negócio à falência! Há muito tempo que não via nada assim!
– Também não é preciso ofender… - disse ele - Já pedi desculpa e por duas vezes!
– Ok, Ok… Queria mais um café, por favor... Tem razão!!Desculpe.
O rapaz afastou-se soltando um “ what ever”.
Ela voltou a olhar o mar, ainda a sorrir.
- Deve de achar que sou um puto, esta… A esticar-se daquela maneira, saia toda para cima, pernão à mostra… nada mau! Toda boa a cota! Parecia que estava a sair da cama… Eh! Eh! Eh! Até que não havia de ser nada mau! Granda curte. Eu mais a cota, enrolados aos meles. Uhhhh… - mas para desanimo seu, foram as pernas que se enrolaram, como num grande nó, e a bandeja, já em equilíbrio periclitante fez uma tangente à cabeça do rapaz sentado à mesa,pairou em tragectória incerta e acabou por aterrar aos pés dela.-Fffffffffffff.... - Mas que... - exclamaram quase em uníssono os dois, o rapaz e ela. Isto já é demais!!!

sexta-feira, 26 de junho de 2009

A esplanada


Não sei… - disse ela – não sei se será bem assim. Estava sentada numa esplanada à beira mar, pernas a abanar, pendentes na enorme cadeira onde se sentara, descontraída. Do outro lado do telemóvel, a amiga dava-lhe conta dos desaguisados amorosos em que se tinha colocado.
- Estás feita… No que te foste meter… Mas isso é mesmo assim? Malandro! E pensar que confiaste tanto… Ohhhhh… A sério? Não digas! - Os olhos brilhavam-lhe de gozo e satisfação, visualizando toda a cena, que do outro lado lhe descreviam, enquanto uma das mãos brincava com uma mecha de cabelo, enrolando-a devagar à volta de um dos dedos, para de seguida a soltar, repetindo maquinalmente o gesto, vezes sem conta.
Era um fim de tarde, daqueles em que tudo parece estar nos seus devidos lugares: o Sol a pôr-se, tingindo o céu de tons rosa e lilás, o ar morno temperado por uma fina brisa, um leve som das ondas, quebrado aqui e alem pelo piar das gaivotas. Na esplanada, sobre a praia, tocava uma daquelas músicas de Verão em berra nesse ano. No balcão, o rapaz nervoso tentava servir todos os pedidos - Raça de gente! O velho é que tinha razão! Desgraçado… Estuda! Marra! E ele… - Sai! Faz-te à vida, curte que a vida é isso! Uma curte pegada. Olha… Ya… Tasse… Que fazer?! Não ia chorar, ia? A parte baril era ver as gajas todas penduradas no balcão, dengosas, a fazer-se … Gajas lindas, meu… Mas mesmo lindas, ali a rirem-se todas para ele.
- Realmente… Ah! Ah! Ah! … Claro que me rio…Deveria chorar? Mas tu tens cada uma… Minha amiga… Continuava ela, rindo em gargalhadas estridentes, rebolando os olhos, olhando em volta, em busca de plateia.
- Mas que grande idiota! - Pensava o rapaz que se sentara mesmo ao lado, fingindo ler a revista do jornal de sábado. Era alto e encorpado, perfumado, cabelo molhado de quem tinha acabado de se levantar e saído do banho. A cabeça tinha sido transformada em gongo, tocada por um poderoso homunculo, que se comprazia em transformar todos os sons do quotidiano em peças dissonantes, desarticuladas, que ecoavam fundo, até à Alma. Era visível o esforço que fazia para se conter. Um sorriso brincava nos seus lábios, imaginando-se a saltar para o pescoço dela e a fechar-lhe de vez a boca. Ia a abanar a cabeça, como que a sacudir aquelas ideias, mas conteve-se a tempo. Não se podia dar a esses luxos. Era incrível como tudo se parecia ter congeminado para se pôr contra ele. Desde a luz que lhe feria os olhos, até ao piar das cabras das gaivotas, e - …ainda aparecia aquela a rir que nem uma hiena, armada em estrela VIP. A vida tinha destas coisas. Num dia vivia intensamente, como se fosse o ultimo dia, no outro em slow motion, o mais slow que lhe era dado conseguir. Podia ter sido ontem. … Mas não. Foi como das outras vezes. Conhecia-as, tentava tocar-lhes com a sua mente. Expectante aguardava. Construía redes complicadas de sondas, prontas a esquadrinhar tudo, cada sentimento, gosto ou emoção, dissecando, criteriosamente, à medida que surgiam, analisando. Num exercício muito seu, recolhia-se para um canto da mente e observava, monitorizando todo o processo; assim, nada era deixado ao acaso e era com grande empenho e dedicação que cumpria o plano “ em busca da paixão”. Sempre uma desilusão. Pensava sempre – É hoje! Engano seu. Começava a achar-se incapaz de sentir. Talvez fosse coisa de outras idades, outras gentes. Dead line. O que não entendia, ocupado como estava, é que era ele próprio o causador do seu infortúnio. A paixão é selvagem e não reconhece donos ou grilhões. É livre, aparece quando quer, sem se fazer anunciar. Voluntariosa, mas também tímida, vai avançando, insinuando-se. Um passo em falso é suficiente para a fazer recuar e definhar.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Quero a Lua…


Quero a Lua…
Quero a lua – disse João, esticando o braço o mais que podia.
Quero ficar com ela na palma da minha mão, a ver se caí ou se fica …
Quero a Lua – disse ele, mordiscando o lábio de nervoso.
Quero apanhar o luar.
Quero as estrelas, o Sol e o Mar, as ondas que requebram, o azul do céu …
Quero ser grande para lá chegar.
Dê-me a Lua, mãe... e as estrelas e o Mar... o Sol, o azul do céu…
O luar… o cheiro das flores.
Dê-me a mão,mãe... leve-me consigo e deixe-me voar…

Para o Joca

sábado, 20 de junho de 2009


Hoje, enquanto fazia o meu passeio habitual, quis o destino presentear-me com algo insólito: por entre biquínis, fatos de banho, saídas de praia, toalhas, t-shirts e calções, ei-lo que surgiu, esplendoroso e triunfal – um vestido de noiva branco, alvo como a neve, num dia tórrido como o de hoje. Avançava alegre, por entre os veraneantes, passos firmes, vestindo um corpo jovem, pés descalços, mãos segurando umas sandálias e um bouquet. Era acompanhado por um não menos discreto fraque. Acabadinhos de casar. Ambos transpiravam felicidade, pairando, etéreos. As pessoas olhavam, hesitando entre o divertido e a consternado; alguns sorriam, outros abanavam a cabeça .
Os outros não existem em alturas como estas. E os olhos apenas servem para contemplar a perfeição do outro.


(...)"Vejo meu bem com seus olhos
E é com meus olhos
Que o meu bem me vê"

Meu Namorado (Edu Lobo/Chico Buarque)

Paixão é isso mesmo.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Para todos aqueles que amam Lisboa


terça-feira, 16 de junho de 2009

Morgana


Devagar, bem devagar foi acordando. O dia amanhecera quente. Foi pouco a pouco assimilando os sons que a rodeavam: primeiro os da casa- uns passos descalços no soalho, onde as pessoas se começavam a levantar, o Ping Ping de uma torneira, depois os do jardim- os pássaros a chilrear, um melro pousado no telhado a debicar uma framboesa, dois besouros a lutar, e finalmente aqueles mais distantes, quase indecifráveis, mas sempre tão sedutores. Com gestos calculados, foi esticando cada músculo do corpo, num ritual quase coreografado, onde nada era deixado ao acaso, da ponta da cabeça, à ponta da unha, lânguida, sorvendo as sensações, absorvendo todo o prazer que daí lhe vinha. Só então iniciou o descerrar dos olhos, como se o fizesse pela primeira vez. A luz do Sol inundou-a. Rebolando sobre si mesma, Morgana ficou de pé num pulo e devagar, enroscou-se nas pernas da dona que distraída lhe afagou a cabeça. Devolveu-lhe um ronronar agradecido e avançou, rumo ao jardim. Lá fora os cheiros fortes da manhã inundaram-lhe as narinas. Foi caminhando pela erva molhada, fingindo não ver o pardal que atrevido saltitava pela calçada, ignorando o perigo que o rondava e que já se encontrava emboscado, escondido no meio de um hibisco, mancha preta, tremendo de frenesim e excitação. O salto surgiu do nada. Num restolhar gata e pássaro pareciam ser um só … mas hoje, hoje foi o dia da caça… Morgana lambeu uma das patas, passou-a pela orelha, alinhou os bigodes e partiu, bamboleante, jardim fora.

segunda-feira, 15 de junho de 2009


Caminhava pelas ruas sem pensar, olhando, as montras … Casualmente atraída por um qualquer trapo, parava, entrava, experimentava, seduzia a vendedora com a sua conversa quente e voltava a sair. O ar frio da manhã batia-lhe no rosto mas sabia-lhe bem. Inspirou fundo, permitindo que este lhe enchesse os pulmões e foi invadida por um cheiro conhecido, mas indistinto para as gentes automatizadas que passavam em velocidade de cruzeiro.
Uma mulher, a custo, arrastava atrás de si uma criança meia adormecida, lutando para que esta acompanhasse os seus passos apressados e já cansados. Tinha-a acordado com carinho, vestido, arranjado, dado o pequeno almoço, arrumado os lanches (para a manhã e para a tarde), tinha alinhavado o jantar, tratado de estender uma maquina de roupa – que isto de ter crianças pequenas é um ror de roupa pra lavar todos os dias – apanhado a que tinha estendido durante a noite, enquanto fazia o jantar e dava banho à menina, - sempre de olho nela, com os miúdos, nunca se sabe…- tinha tomado banho, tinha-se vestido, soltado um “ até logo” ao marido que só então se começava a levantar e saído em disparada para a rua, já atrasada. Todos os dias a mesma correria, dia após dia.
Mais à frente um homem acocorara-se no chão, em cima de uns cartões, sapatos escondidos por debaixo de uns jornais, pés nus e roxos, mão estendida para os que passavam. Novos ou velhos, mulheres, homens ou crianças, todos se descalçavam. Era como um elo que os unia, um estatuto; descalçavam-se e sentavam-se em cima de tiras de cartão. Vinham de todos os lados, mais frequentemente de países do leste. Sempre a impressionara os pés descalços, talvez por os associar ao frio, ao desconforto, conotando-os com a desgraça, o infortúnio em que se encontram aqueles que têm de recorrer à caridade dos outros para sobreviverem, mas ultimamente achava que os pés descalços, mais do que outra coisa, eram um artifício, bem engendrado para atrair a caridade e bondade alheias. E isso fazia com que, sempre que visse uns pés descalços não resistisse a lançar-lhes um olhar de desdém, acelerando o passo, enjoada. Um dia, acabou por confirmar que estava certa, mas não da forma que pensava: alguém lhe contou que aqueles pobres desgraçados eram todos os dias, de manhã cedo, descarregados de carrinhas, como se fossem gado, e deixados à porta de supermercados, lojas, para “pedir” e recolhidos, no final do dia, subtraindo-lhes todo o dinheiro que tinham ganho e também alguma réstia de dignidade que ainda ousassem conservar. Eram estes os seus pensamentos, enquanto se deixava ir, rua abaixo, sem rumo ou direcção. Continuou a vaguear, pensando mais uma vez no passado, nas vezes que por ali já tinha andado, nos passos que já tinha dado e que poderiam muito bem ter sido também os dele. Quem sabe, não teriam caminhado, um em direcção ao outro, apressados, cabelos ao vento, mãos nos bolsos, raspado ao de leve no ombro um do outro, murmurado até talvez uma desculpa, e seguido indiferentes, perdendo-se no meio de todos os outros rostos, que passam todos os dias e dos quais não se guarda qualquer lembrança, afastando-se, até se tornarem pequenos pontos, sem dimensão…
Ultimamente o passado infiltrava-se nos seus pensamentos de uma forma quase contínua. Pé ante pé, insinuava-se, enroscava-se, colando-se a novas situações, sensações, experiências.
Voltou a inspirar. E continuou a andar, no meio de todos os outros, sentindo aquele cheiro conhecido, forte, carregado,mas ao mesmo tempo reconfortante da cidade.