sexta-feira, 21 de maio de 2010

    POEMAS INCONJUNTOS
     Dizes-me: tu és mais alguma cousa Que uma pedra ou uma planta. Dizes-me: sentes, pensas e sabes Que pensas e sentes, Então as pedras escrevem versos? Então as plantas têm idéias sobre o mundo? Sim: há uma diferença. Mas não é a diferença que encontras; Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas; Só me obriga a ser consciente. Se sou mais que uma  pedra ou uma planta? Não sei. Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos. Ter consciência é mais que ter côr? Pode ser e pode não ser. Sei que é diferente apenas. Ninguém pode provar que é mais que só diferente. Sei que a pedra é a real, e que a planta existe. Sei isto porque elas existem. Sei isto porque os meus sentidos mo mostram. Sei que sou real também. Sei isto porque os meus sentidos mo mostram, Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta. Não sei mais nada.   Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos. Sim, faço idéias sobre o mundo, e a planta nenhumas. Mas é que as pedras não são poetas, são pedras; E as plantas são plantas só, e não pensadores. Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto, Como que sou inferior. Mas não digo isso: digo da pedra, "é uma pedra", Digo da planta, "é uma planta", Digo de mim, "sou eu". E não digo mais nada. Que mais há a dizer? A espantosa realidade das cousas É a minha descoberta de todos os dias. Cada cousa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, E quanto isso me basta. Basta existir para se ser completo. Tenho escrito bastantes poemas. Hei de escrever muitos mais, naturalmente. Cada poema meu diz isto, E todos os meus poemas são diferentes, Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto. Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra. Não me ponho a pensar se ela sente. Não meu perco a chamar-lhe minha irmã. Mas gosto dela por ela ser uma pedra, Gosto dela porque ela não sente nada. Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo. Outras vezes oiço passar o vento, E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido. Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto; Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo, Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar; Porque o penso sem pensamentos Porque o digo como as minhas palavras o dizem. Uma vez chamaram-me poeta materialista, E eu admirei-me, porque não julgava Que se me pudesse chamar qualquer cousa. Eu nem sequer sou poeta: vejo. Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho: O valor está ali, nos meus versos. Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

Alberto Caeiro
7.11.1915.
Do livro: "O Eu profundo e os outros Eus", de Fernando Pessoa, 12ª Ed., Ed. Nova Fronteira, 1980
Voltou ao ponto de partida.
Alice estava de volta à esplanada. Sentada a uma mesa, a olhar o mar, que se espraiava à sua frente, mas desta vez sozinha. Não que fizesse grande diferença… ao fim ao cabo voltara ao início.
Estava a sentir-se um logro. Tinha-lhe sido concedido o Todo. O Todo ficara em quase nada. As opções tinham sido desastrosas. Podia ter feito tanto… E acabara por viver uma vida que não lhe parecia aquela que lhe tinha sido prometida. Essa tinha-lhe sido roubada. Alguém a tinha vivido, em vez dela. Não podia culpar ninguém… As opções tinham sido as suas. Mas… será que teria sido mesmo esse o caso? Poderia dizer, com toda a propriedade que era livre? Julgava que não. As pressões e tensões acabam por ser muitas, de vários lados. Por um motivo ou por outro, acabamos por fazer concessões, abrir excepções, e afinal… afinal não estamos sozinhos aqui. Ninguém é verdadeiramente livre… a menos que seja um eremita, ou um louco. O livre arbítrio é uma invenção de lunáticos. Não temos escolha. Nascemos com tudo, todos nós, mas o destino vai-se encarregando da construção de uma trama, bem intrincada, de fios, laçadas e voltas, que nos vão arrancando a pele, pedaços, identidades, desviando os passos, ardilosamente, a seu belo prazer.
Uma vez, alguém lhe tinha dito:” Sinto a minha vida a esvair-se. Imagina que estás na praia, pegas um punhado de areia na mão, e vais deixando que escorregue, por entre os teus dedos. Assim sinto eu a minha vida. Como essa areia que cai; e cada vez a minha mão está mais vazia.”
Na altura achara um exagero, embora tivesse entendido. E agora ali estava. A taça estava à sua frente. Nunca tinha tomado consciência disso, mas neste momento estava ali. Ao nível dos seus olhos. Provavelmente sempre ali estivera. Apenas não a tinha visto. Mas mesmo assim, tinha a nítida consciência de que se estava a esvaziar, aos poucos, umas vezes lentamente, outras vezes mais depressa. O ritmo parecia aleatório, mas dependia dela e das suas decisões.
Neste momento a areia corria num fio fino, contínuo, que nem o vento forte do Guincho perturbava.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Unforgettable

Unforgettable