terça-feira, 30 de junho de 2009

A esplanada II


Humm… aquela gaja é sempre a mesma coisa. Mete-se em caldeiradas do caraças, faz-se toda… Ah! Ah! Ah! Está à espera do quê?! Do príncipe perfeito, enrolado em papel celofane? E se calhar com um anélito no bolso, não? Eh! Eh! Eh! … Ela há cada uma! Enfim… -Não contes nada a ninguém! Por favor! - Deve ser por isso que foram só sete chamadas… Todas a falar dela… E dele. …- És a minha melhor amiga! Não conto a ninguém senão a ti! … Nota-se! Mas ela lá sabia, as linhas com que se cosia.
Melhor amiga! Os melhores amigos não se anunciam. Não precisam. São-no, independentemente de falarmos ou não. São aquelas pessoas com as quais estamos e basta estar. Podemos estar e não falar, não fazer nada. Dão-nos liberdade para isso e para muito mais. Ela sabia lá o que era “melhor amiga”. Para ela era tudo, farinha do mesmo saco. Eram todos amigos. Mal acabava de conhecer um desgraçado qualquer e tunga! Amigo! Prazer… Amigo! Oh Amigo…
Mas este Sol está tão bom… pensava ela, deixando-se acariciar pelo calor morno do Sol em fim de tarde. Ia passando um pé pela perna, devagar, espreguiçando-se discretamente e relembrando… tinha-se vestido dele, como uma segunda pele. O cheiro ainda estava ali, colado. Esquecendo-se onde estava, voltou a espreguiçar-se que nem uma gata, usando cada músculo do corpo, esticando-se muito devagar, para depois, ainda mais devagar, relaxar; o esboçar de um gemido de prazer abruptamente decepado por um solavanco na mesa. Abriu os olhos com irritação. Embaraçado, ele esforçava-se por passar a estado gasoso, confundindo-se com o ar, mas os olhos faiscantes dela eram o suficiente para o paralisar.
– Uuups… Eh! Eh! Eh!- babulciou ele- ... Desculpe.... Foi a querer!! Aiii! Foi sem entender!! Poças! Foi sem intenção. … Até que enfim. Estava a ver que não! - Os olhos dela continuavam fixos nos dele, toda ela fervendo, em ebulição.
– Mais uma vez, desculpe. Deseja mais alguma coisa? - Nervosamente tentava limpar a mesa, provocando uma onda de devastação de chávenas, copos, colheres, que se iam estatelando no chão, com estrondo. Voltou a encara-la. E ela ria. Ria às gargalhadas.
– Mas é hilariante… a trabalhar assim vai levar o negócio à falência! Há muito tempo que não via nada assim!
– Também não é preciso ofender… - disse ele - Já pedi desculpa e por duas vezes!
– Ok, Ok… Queria mais um café, por favor... Tem razão!!Desculpe.
O rapaz afastou-se soltando um “ what ever”.
Ela voltou a olhar o mar, ainda a sorrir.
- Deve de achar que sou um puto, esta… A esticar-se daquela maneira, saia toda para cima, pernão à mostra… nada mau! Toda boa a cota! Parecia que estava a sair da cama… Eh! Eh! Eh! Até que não havia de ser nada mau! Granda curte. Eu mais a cota, enrolados aos meles. Uhhhh… - mas para desanimo seu, foram as pernas que se enrolaram, como num grande nó, e a bandeja, já em equilíbrio periclitante fez uma tangente à cabeça do rapaz sentado à mesa,pairou em tragectória incerta e acabou por aterrar aos pés dela.-Fffffffffffff.... - Mas que... - exclamaram quase em uníssono os dois, o rapaz e ela. Isto já é demais!!!

sexta-feira, 26 de junho de 2009

A esplanada


Não sei… - disse ela – não sei se será bem assim. Estava sentada numa esplanada à beira mar, pernas a abanar, pendentes na enorme cadeira onde se sentara, descontraída. Do outro lado do telemóvel, a amiga dava-lhe conta dos desaguisados amorosos em que se tinha colocado.
- Estás feita… No que te foste meter… Mas isso é mesmo assim? Malandro! E pensar que confiaste tanto… Ohhhhh… A sério? Não digas! - Os olhos brilhavam-lhe de gozo e satisfação, visualizando toda a cena, que do outro lado lhe descreviam, enquanto uma das mãos brincava com uma mecha de cabelo, enrolando-a devagar à volta de um dos dedos, para de seguida a soltar, repetindo maquinalmente o gesto, vezes sem conta.
Era um fim de tarde, daqueles em que tudo parece estar nos seus devidos lugares: o Sol a pôr-se, tingindo o céu de tons rosa e lilás, o ar morno temperado por uma fina brisa, um leve som das ondas, quebrado aqui e alem pelo piar das gaivotas. Na esplanada, sobre a praia, tocava uma daquelas músicas de Verão em berra nesse ano. No balcão, o rapaz nervoso tentava servir todos os pedidos - Raça de gente! O velho é que tinha razão! Desgraçado… Estuda! Marra! E ele… - Sai! Faz-te à vida, curte que a vida é isso! Uma curte pegada. Olha… Ya… Tasse… Que fazer?! Não ia chorar, ia? A parte baril era ver as gajas todas penduradas no balcão, dengosas, a fazer-se … Gajas lindas, meu… Mas mesmo lindas, ali a rirem-se todas para ele.
- Realmente… Ah! Ah! Ah! … Claro que me rio…Deveria chorar? Mas tu tens cada uma… Minha amiga… Continuava ela, rindo em gargalhadas estridentes, rebolando os olhos, olhando em volta, em busca de plateia.
- Mas que grande idiota! - Pensava o rapaz que se sentara mesmo ao lado, fingindo ler a revista do jornal de sábado. Era alto e encorpado, perfumado, cabelo molhado de quem tinha acabado de se levantar e saído do banho. A cabeça tinha sido transformada em gongo, tocada por um poderoso homunculo, que se comprazia em transformar todos os sons do quotidiano em peças dissonantes, desarticuladas, que ecoavam fundo, até à Alma. Era visível o esforço que fazia para se conter. Um sorriso brincava nos seus lábios, imaginando-se a saltar para o pescoço dela e a fechar-lhe de vez a boca. Ia a abanar a cabeça, como que a sacudir aquelas ideias, mas conteve-se a tempo. Não se podia dar a esses luxos. Era incrível como tudo se parecia ter congeminado para se pôr contra ele. Desde a luz que lhe feria os olhos, até ao piar das cabras das gaivotas, e - …ainda aparecia aquela a rir que nem uma hiena, armada em estrela VIP. A vida tinha destas coisas. Num dia vivia intensamente, como se fosse o ultimo dia, no outro em slow motion, o mais slow que lhe era dado conseguir. Podia ter sido ontem. … Mas não. Foi como das outras vezes. Conhecia-as, tentava tocar-lhes com a sua mente. Expectante aguardava. Construía redes complicadas de sondas, prontas a esquadrinhar tudo, cada sentimento, gosto ou emoção, dissecando, criteriosamente, à medida que surgiam, analisando. Num exercício muito seu, recolhia-se para um canto da mente e observava, monitorizando todo o processo; assim, nada era deixado ao acaso e era com grande empenho e dedicação que cumpria o plano “ em busca da paixão”. Sempre uma desilusão. Pensava sempre – É hoje! Engano seu. Começava a achar-se incapaz de sentir. Talvez fosse coisa de outras idades, outras gentes. Dead line. O que não entendia, ocupado como estava, é que era ele próprio o causador do seu infortúnio. A paixão é selvagem e não reconhece donos ou grilhões. É livre, aparece quando quer, sem se fazer anunciar. Voluntariosa, mas também tímida, vai avançando, insinuando-se. Um passo em falso é suficiente para a fazer recuar e definhar.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Quero a Lua…


Quero a Lua…
Quero a lua – disse João, esticando o braço o mais que podia.
Quero ficar com ela na palma da minha mão, a ver se caí ou se fica …
Quero a Lua – disse ele, mordiscando o lábio de nervoso.
Quero apanhar o luar.
Quero as estrelas, o Sol e o Mar, as ondas que requebram, o azul do céu …
Quero ser grande para lá chegar.
Dê-me a Lua, mãe... e as estrelas e o Mar... o Sol, o azul do céu…
O luar… o cheiro das flores.
Dê-me a mão,mãe... leve-me consigo e deixe-me voar…

Para o Joca

sábado, 20 de junho de 2009


Hoje, enquanto fazia o meu passeio habitual, quis o destino presentear-me com algo insólito: por entre biquínis, fatos de banho, saídas de praia, toalhas, t-shirts e calções, ei-lo que surgiu, esplendoroso e triunfal – um vestido de noiva branco, alvo como a neve, num dia tórrido como o de hoje. Avançava alegre, por entre os veraneantes, passos firmes, vestindo um corpo jovem, pés descalços, mãos segurando umas sandálias e um bouquet. Era acompanhado por um não menos discreto fraque. Acabadinhos de casar. Ambos transpiravam felicidade, pairando, etéreos. As pessoas olhavam, hesitando entre o divertido e a consternado; alguns sorriam, outros abanavam a cabeça .
Os outros não existem em alturas como estas. E os olhos apenas servem para contemplar a perfeição do outro.


(...)"Vejo meu bem com seus olhos
E é com meus olhos
Que o meu bem me vê"

Meu Namorado (Edu Lobo/Chico Buarque)

Paixão é isso mesmo.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Para todos aqueles que amam Lisboa


terça-feira, 16 de junho de 2009

Morgana


Devagar, bem devagar foi acordando. O dia amanhecera quente. Foi pouco a pouco assimilando os sons que a rodeavam: primeiro os da casa- uns passos descalços no soalho, onde as pessoas se começavam a levantar, o Ping Ping de uma torneira, depois os do jardim- os pássaros a chilrear, um melro pousado no telhado a debicar uma framboesa, dois besouros a lutar, e finalmente aqueles mais distantes, quase indecifráveis, mas sempre tão sedutores. Com gestos calculados, foi esticando cada músculo do corpo, num ritual quase coreografado, onde nada era deixado ao acaso, da ponta da cabeça, à ponta da unha, lânguida, sorvendo as sensações, absorvendo todo o prazer que daí lhe vinha. Só então iniciou o descerrar dos olhos, como se o fizesse pela primeira vez. A luz do Sol inundou-a. Rebolando sobre si mesma, Morgana ficou de pé num pulo e devagar, enroscou-se nas pernas da dona que distraída lhe afagou a cabeça. Devolveu-lhe um ronronar agradecido e avançou, rumo ao jardim. Lá fora os cheiros fortes da manhã inundaram-lhe as narinas. Foi caminhando pela erva molhada, fingindo não ver o pardal que atrevido saltitava pela calçada, ignorando o perigo que o rondava e que já se encontrava emboscado, escondido no meio de um hibisco, mancha preta, tremendo de frenesim e excitação. O salto surgiu do nada. Num restolhar gata e pássaro pareciam ser um só … mas hoje, hoje foi o dia da caça… Morgana lambeu uma das patas, passou-a pela orelha, alinhou os bigodes e partiu, bamboleante, jardim fora.

segunda-feira, 15 de junho de 2009


Caminhava pelas ruas sem pensar, olhando, as montras … Casualmente atraída por um qualquer trapo, parava, entrava, experimentava, seduzia a vendedora com a sua conversa quente e voltava a sair. O ar frio da manhã batia-lhe no rosto mas sabia-lhe bem. Inspirou fundo, permitindo que este lhe enchesse os pulmões e foi invadida por um cheiro conhecido, mas indistinto para as gentes automatizadas que passavam em velocidade de cruzeiro.
Uma mulher, a custo, arrastava atrás de si uma criança meia adormecida, lutando para que esta acompanhasse os seus passos apressados e já cansados. Tinha-a acordado com carinho, vestido, arranjado, dado o pequeno almoço, arrumado os lanches (para a manhã e para a tarde), tinha alinhavado o jantar, tratado de estender uma maquina de roupa – que isto de ter crianças pequenas é um ror de roupa pra lavar todos os dias – apanhado a que tinha estendido durante a noite, enquanto fazia o jantar e dava banho à menina, - sempre de olho nela, com os miúdos, nunca se sabe…- tinha tomado banho, tinha-se vestido, soltado um “ até logo” ao marido que só então se começava a levantar e saído em disparada para a rua, já atrasada. Todos os dias a mesma correria, dia após dia.
Mais à frente um homem acocorara-se no chão, em cima de uns cartões, sapatos escondidos por debaixo de uns jornais, pés nus e roxos, mão estendida para os que passavam. Novos ou velhos, mulheres, homens ou crianças, todos se descalçavam. Era como um elo que os unia, um estatuto; descalçavam-se e sentavam-se em cima de tiras de cartão. Vinham de todos os lados, mais frequentemente de países do leste. Sempre a impressionara os pés descalços, talvez por os associar ao frio, ao desconforto, conotando-os com a desgraça, o infortúnio em que se encontram aqueles que têm de recorrer à caridade dos outros para sobreviverem, mas ultimamente achava que os pés descalços, mais do que outra coisa, eram um artifício, bem engendrado para atrair a caridade e bondade alheias. E isso fazia com que, sempre que visse uns pés descalços não resistisse a lançar-lhes um olhar de desdém, acelerando o passo, enjoada. Um dia, acabou por confirmar que estava certa, mas não da forma que pensava: alguém lhe contou que aqueles pobres desgraçados eram todos os dias, de manhã cedo, descarregados de carrinhas, como se fossem gado, e deixados à porta de supermercados, lojas, para “pedir” e recolhidos, no final do dia, subtraindo-lhes todo o dinheiro que tinham ganho e também alguma réstia de dignidade que ainda ousassem conservar. Eram estes os seus pensamentos, enquanto se deixava ir, rua abaixo, sem rumo ou direcção. Continuou a vaguear, pensando mais uma vez no passado, nas vezes que por ali já tinha andado, nos passos que já tinha dado e que poderiam muito bem ter sido também os dele. Quem sabe, não teriam caminhado, um em direcção ao outro, apressados, cabelos ao vento, mãos nos bolsos, raspado ao de leve no ombro um do outro, murmurado até talvez uma desculpa, e seguido indiferentes, perdendo-se no meio de todos os outros rostos, que passam todos os dias e dos quais não se guarda qualquer lembrança, afastando-se, até se tornarem pequenos pontos, sem dimensão…
Ultimamente o passado infiltrava-se nos seus pensamentos de uma forma quase contínua. Pé ante pé, insinuava-se, enroscava-se, colando-se a novas situações, sensações, experiências.
Voltou a inspirar. E continuou a andar, no meio de todos os outros, sentindo aquele cheiro conhecido, forte, carregado,mas ao mesmo tempo reconfortante da cidade.

sábado, 13 de junho de 2009


A porta abriu-se. Estava escuro. Com dificuldade semicerrou os olhos, numa tentativa de melhor se habituar à escuridão e ao mesmo tempo ver para lá daquela parede escura. Nada. Sem querer, recuou. Fisicamente os seus pés recuaram um passo, mas foi todo o seu ser que se encolheu para dentro de si, numa vã tentativa de se esconder, de se refugiar de algo que já não tinha escapatória. “ Na nossa vida fazemos escolhas, que têm consequências e com as quais temos de viver…” as escolhas há muito estavam feitas e não havia forma de voltar atrás; por muito que se escondesse, que adiasse o momento final, indubitavelmente, mais dia, menos dia ia esbarrar com ele, numa esquina qualquer… numa topada duma pedra, num qualquer acaso, que precipitaria tudo, numa escalada crescente, arrastando consigo um turbilhão de emoções controladas, cautelosamente encenadas e dimensionadas para cada momento. Era assim há anos… já nem se lembrava… de quando não era assim. Recordava os momentos, mas pouco a pouco tudo se tinha começado a agigantar ao seu redor, cristalizando e aumentando, aumentando e crescendo e avolumando e solidificando, tolhendo cada vez mais as suas acções, os movimentos, a razão, a vontade. Pouco a pouco foi mergulhando numa sensação de embriagues, num entorpecimento; pouco a pouco foi deixando de guerrear, ripostar, pontapear, gritar, de se agitar, de se mover, de pensar.
Ficou.
Ali.
Só.
Foi ficando, permanecendo, aquiescendo, vestindo-se de festa, quando havia festa, de preocupação, de ralação, de consternação, de dedicação, efabulação, de felicidade, romance, paixão… O certo é que tudo corria, mole mente…até que um dia…. Escolheu respirar.
Num movimento tímido, pôs a cabeça para cima e inspirou: primeiro devagar, depois sofregamente, à medida que o ar fresco ia inundando os seus pulmões, devolvendo-lhe a vida, o vigor, a vontade, a coragem e ao mesmo tempo a dor, Nada voltou a ser como antes. Não podia. Uma vez que o cordão dourado se tinha cortado, tudo era vão. Nada mais poderia segurar aquela força que ali tinha ficado, espezinhada e acorrentada e agora se recusava a voltar … por isso abriu a porta. Estava escuro. Sem querer recuou. Fisicamente os seus pés recuaram um passo, mas foi todo o seu ser que avançou, rumo à escuridão, numa tentativa de finalmente se revelar, a si, a todos. Parou. Inspirou profundamente, abriu bem os olhos, desenrolou as asas e voou.

sexta-feira, 12 de junho de 2009


Quando era criança os dias corriam, disparavam, galgavam uns atrás dos outros, num frenesim excitante, sucedendo-se numa catadupa de emoções intensas, coloridas, brilhantes, vivas. Às vezes rodopiava sem parar, às voltas sobre mim mesma, deixando-me cair no chão, numa tontura sem fim, a cabeça a girar, a girar, embora estivesse parada. Agora que penso nisso, o mesmo acontecia quando andava de baloiço, horas e horas a fio; atirava-me então para trás, na cama e continuava a balançar, num vaivém gostoso,olhos fechados, o mundo sempre a girar.
Os dias eram sempre diferentes, vividos com sofreguidão, copiosamente bebidos, absorvidos, não desperdiçando uma gota. Ria, chorava, gostava, amava, odiava, com carinho, ternura, amor, raiva, desespero… numa sucessão ininterrupta, interminável, de combinações imprevistas e imponderáveis. Era o tempo do hoje, do agora, já !!! Nada podia esperar, sob pena de escorregar e se perder por entre os dedos e o chão desabar por debaixo dos pés.No dia de hoje, olhando para trás, consigo ainda sentir os ecos daquela felicidade completa e não posso deixar de me rir...

quinta-feira, 11 de junho de 2009

A aranha e a mosca





- Vem… Entra na minha teia - disse com voz doce e sedutora, a aranha à mosca que por ali esvoaçava – não te faças rogada, eu bem te vi, a mirar de longe a minha teia…
Repara na beleza dos seus fios! Já viste como brilham e reflectem a luz em mil cores? Vá lá… Vem! Daqui poderás apreciar melhor todo o seu esplendor e beleza…
A mosca abrandou o seu voo e olhou para a aranha. Já muitas vezes por ali tinha passado; muitas vezes tinha visto a aranha a desfiar a sua teia… Muitas vezes a tinha visto a atordoar as suas vítimas, enrolando-as ávida e, gulosamente nos fios brilhantes. Que lhe poderia ela querer?! A não ser …O seu sangue, a sua vida? Mas a mosca era curiosa - e se eu… mas… não! Era com este turbilhão de pensamentos que a mosca se debatia. Por um lado, a razão ditava-lhe uma morte certa e atroz, mas por outro lado… Porque não arriscar? Tinha confiança em si. Afinal, de que lhe servia voar? Lá em baixo, a aranha sorria e pensava de si para si….És minha! Só minha! E a mosca, como que adivinhando os seus pensamentos pensava …Sou dela! Só dela. Se não me acautelar perderei toda a minha vontade, despirei a minha couraça, tirarei a minha capa de temores e receios e ficarei nas suas garras, frágil como sou, despida de tudo e de mim, nua ….
Quero-te aqui! Nua, despida de todas essas protecções que teimam em me atrapalhar! - Cogitava a aranha - Quero-te aqui…
…Queria tanto estar aí, … Bem no alto…, Junto de ti…. Sentir o vento, devagarinho, bem devagarinho a embalar-me, e a sussurrar… ver o sol a bater nos fios da tua teia e a vestir o meu corpo de mil e uma cores… Sozinhas… Só tu e eu e a tua teia… Que interessa o que me possa acontecer?
Ela está ali, a olhar para mim… De certo não me fará mal… Se fosse para o fazer, já não estaria aqui…
Decidida, a mosca avançou, passo… Após passo…Após passo, naquilo que poderia ser a sua derradeira caminhada… A aranha mantinha-se imóvel, tremendo de excitação e frenesim, degustando, sentindo já todo o prazer com que o destino a tinha premiado
Incapaz de se conter mais tempo, a aranha avançou. Gulosa, fechou os olhos e antecipou a caçada com que se iria banquetear… a mosca, tonta voou e colocou-se ao alcance da aranha, pensando em tudo o que iria conhecer, com o brilho cego do desconhecido no olhar….
Splachhhhh!!!!!!!!!!!!! O fim foi atroz, mas imediato. Durante breves instantes tudo ficou calmo. Finalmente um grito lancinante rompeu o silêncio:
- Mãe, mãe!!!Desta vez é que foi!!!!!!!! Dois de uma vez só!!!! Grande pinta!!

quarta-feira, 10 de junho de 2009

O dia foi anoitecendo, de mansinho. A agitação da tarde foi dando lugar a uma quase indolência que devagar, pé ante pé se foi começando a instalar, ronronando, toda ela dengosa e sedutora. Não sei bem o que fazer- pensou ela, ruga de irritação a instalar-se na testa. Poderia ficar em casa, ou telefonar a um amigo e desafia-lo para um copo... ou ir a um cinema... vou acabar por ficar aqui, afundada num sofá, consciente de que posso tudo, mas acabando por não fazer nada. Poder fazer tudo pode ser uma condicionante. Principalmente quando se chegou a uma idade em que se tem uma maior consciência de si, e de que o leque de opções é de facto muito alargado. O tempo das verdades absolutas jaz, lá longe.. o que torna tudo bem mais complicado. A idade traz uma maior exigência e ao mesmo tempo um despudor, o que nos permite, com o maior das avontades dizer o impensável, sorriso nos lábios, perante o embaraço e constrangimento dos demais. Compreendo
agora, aquela minha tia, que fazia as minhas delícias e que dizia sempre aquilo que todos estavam a pensar, mas que guardavam para si, reafirmando, peremptoriamente todas as suas palavras, se alguém ousasse pô-la na ordem. Querida tia!!!