segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Red


- Achas que ela não volta?
- Tenho a certeza, Gil.
Beatriz estava quieta, sentada em frente a ele. E vagueava. Ele brincava com a mão dela nas suas, terno, como sempre, mas as palavras trespassavam-na sem deixar marca. Era como se fosse volátil, gasosa, um holograma.
Beatriz sonhava com cores, cores rápidas e velozes, que se matizavam e misturavam, tingiam, numa amálgama colorida.
- Se fosses uma cor… Que cor gostarias de ser? - perguntou ela.
- Essa agora, minha… Uma cor? Assim de repente?! Sei lá…
Uma cor… Gosto de tantas… Não sei…
- Não se trata da cor que mais gostas – disse ela, sorrindo – podes por exemplo gostar do amarelo e não seres amarelo…
- Tens cada uma Bia! Agora eu amarelo! Amarelo é cor de ovo… Amarelo… Agora as pessoas também têm cores? Só mesmo dessa cabecinha! Uma cabecinha linda… Mas doida ! És mesmo doida ! Eheheh!
- Porque não? Porque não poderemos ter cores? Temos mesmo! Nunca ouviste falar em auras? Ouviste…
 Não me contaste que tiveste uma namorada budista? Não acredito que ela não te tenha falado disso… Falou de certeza.
Ele replicou qualquer coisa, mas já Beatriz tinha zarpado, em direcção ao zénite. Fechando os olhos, passou o azul dos céus longínquos, os lilases das alfazemas, de que tanto gostava, os laranja, pincelados de rosa do por do sol, e deu por si mergulhada em vermelhos marmóreos, ora fortes, ora pálidos, que de uma candura pungente se tornavam ferozes e mortais.
 Fascinada, deixou-se mergulhar naquele mar de vermelho sangue, morno, quente e aconchegante.
Tinha descoberto a sua cor: Red...



quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Irmã Lua



Alice:

Esta noite, olho a lua e não consigo deixar de pensar em ti, Alice….
Está grande, enorme, redonda, cheia de luz…
Ias gostar de…
 Estava a pensar e ia escrever isso mesmo: que ias gostar de a ver, mas na certa, conhecendo-te, deves de estar em algum lugar a olhar para ela. É mais forte do que tu. Há pessoas de Sol, pessoas de Mar, do Céu e das Estrelas… Tu és uma pessoa da Lua. Como eu: minha irmã da Lua! Às vezes acho que foi mesmo de lá que vieste. Não pertences a nada disto, a este mundo. Tens o seu brilho nos olhos, o fascínio, a sabedoria. Sabes sempre como me indicar o caminho, sem parecer que o fazes… Isso tem de ser um dom, não te parece?
Aguentaste demais, é verdade, mas agora não, Alice. Agora parecia estar tudo tão bem!!!  O mau tempo tinha passado, começavas a sorrir cada vez mais. Tu mesma dizias que eras cada vez mais tu… Porque não falaste comigo? Ou com o Gil? Porque partiste assim, sem uma palavra, só com uma carta deixada na mesa da nossa cozinha… Fazes uma ideia do estado dele com certeza. Já para não falar no meu.
Preciso tanto de ti, precisamos…
Diz-me que voltas! Que não passou tudo de …
 Ohhhh  Alice!!!
 Não é nenhuma brincadeira, não é? Tu não nos farias isto se não fosse verdade. Não vais voltar atrás…
Sei que vendeste a casa, porque passei por lá, e lá estava o letreiro, da venda…
Sabes uma coisa? Como sempre, tu trataste de tudo. Julgava que ia ficar de rastos quando o Gil me disse, aos soluços….
-  A Alice… A Alice… - sem conseguir acabar a frase.
 - Foi-se embora - disse-lhe eu.
- Sabias e… e não me disseste nada Bia? Eu tinha falado com ela, porra!!! Onde tinhas essa cabeça, diz-me…
 Tu sabes que não me tinhas dito nada. Mas eu sabia. No meu intimo sabia que tinhas ido…
Preparaste o terreno, esperaste uma noite de lua cheia e partiste, montada num dos raios mais brilhantes do luar.
Como eu te adoro Alice!

Adeus minha irmã..
Ficarei à tua espera.
Volta para nós..

Não sei para onde enviar esta carta. Não tenho o teu endereço.. Vou deixa-la na esplanada. Se voltares… sei que será o primeiro sítio onde irás.

Beijo

Beatriz


terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Rio de descontentamento.


Estou a escrever-te esta carta devagar. Para ver se sei o que dizer… ou mesmo como hei-de começar.
 Estava aqui sentada e foi uma ideia que surgiu. Já sei que não vou sossegar enquanto não a concretizar. Conheces-me bem. Sabes que é assim.
  Ainda não sei o que te dizer… Por isso escrevo, devagar. Paro e sinto o meu coração bater. Os meus dedos parecem o seu prolongamento. Teclam ao seu ritmo: um ritmo certo e seguro. Engraçado ser assim. Porque eu não me sinto nada certa, nem segura…
   Sei, isso sim, com uma certeza irrefutável, o que me espera, o que nos espera. Não me perguntes porquê. Apenas sei. E não. Não estou a pensar de novo “em dar o salto”, como lhe chamaste… Já o fiz uma vez. Não sou pessoa de reprises. Saí de dentro de mim, para o mundo, mas os Deuses não me quiseram. Não vale a pena contraria-los. Provavelmente voltariam a rejeitar-me. Iriam encontrar de novo outro ser para me cuspir de volta para os braços do Mundo. E isso seria insuportável. O meu destino é andar por cá. Não o posso mudar. Resignei-me.
Vais com certeza odiar-me. Disso tenho muita pena, Gil, mas não me resta outra alternativa.
Lembra-te de mim. Dos dias que passamos juntos, a falar de ti, da Bia, de vocês, de mim. Lembra-te de mim nesses dias, que corriam preguiçosos, sentados na esplanada, à beira mar, onde tudo começou. Do Verão no Guincho onde à noite se ouvia o som da tua guitarra e onde tu tocavas, sem saber, para ela…
 Ficarás sempre comigo. É essa a minha vontade. Faz com que seja também a tua. Guardar-me contigo dependerá apenas de ti.
 Eu estarei numa outra esplanada qualquer a recordar a minha passagem por aqui, de sorriso nos lábios e um sabor doce na boca.
  Tenho de ir. Chegou o momento. Não faz qualquer sentido continuar por cá. Está a tornar-se demasiado penoso. Tu ganhaste asas. É só teres coragem e …voar. Por muito que assim o penses, não precisas de ninguém, nem de mim, nem mesmo da Bia. És tu mesmo. Se parares de argumentar, de te debateres com o que é irrefutável, verás como tenho razão…
Escrevo-te esta carta. Uma carta cheia de sentimento, mas fria.  Racionalizada. Foi a única forma de o fazer.
Mesmo assim, as lágrimas rolam sem parar, num rio amargo de descontentamento.
 É outra pessoa que chora. Não eu.
 Eu estou a escrever esta carta, devagar, concentrada nas teclas, no seu local exacto, para não me enganar.
Gil…
É tudo o que sou capaz.


Para sempre
Alice