quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Um dia





Alice estava sentada, de pernas cruzadas, numa mesa de café. A sala, aos poucos ia-se compondo, apesar de ainda ser bastante cedo. Gostava de se perder, impregnar as paredes com os seus pensamentos, colorir os vidros com as suas cores, pendurar reflexos nos espelhos. Vagueava pela sala, numa dormência vagarosa, até se prender. Podia ser num objeto, num raio de luz, numa flor. Nunca sabia  qual. O que sabia é que era sublime. Às vezes nada acontecia. Podiam passar minutos, horas, dias e ela ali, suspensa, viciada naquele abandono . Até aquele dia, em que o desespero falou mais alto e o fio se soltou de vez dentro de si, naquela arriba do Guincho . No ultimo minuto sentiu uma garra que a puxava para a vida,  que lhe rasgava as entranhas e a dividia em dois. Uma Alice ficou ali, inerte, à beira do abismo. A outra enfrentou as águas frias e mergulhou de cabeça, olhos bem abertos, no vazio.
Já tinha passado tanto tempo…
Alice perscrutava a sala. Sabia bem o que procurava. Corria o café de uma ponta a outra, vasculhava todos os cantos, inspecionava todos aqueles que entravam, desde a velhinha mal-encarada e carcomida até ao galã de trazer por casa que não parava de lhe fazer olhinhos.” Idiota! Como se fosse parar por aquilo.”
  As suas cores escorriam, meio desbotadas pelas janelas do café e os reflexos, teimosos, estavam sempre tortos, de soslaio. Sentia-se a desesperar. Fechou os olhos e com um suspiro de resignação levantou-se, em direção à saída. Ainda não tinha sido hoje. Voltaria amanhã, e depois e depois e quantas vezes mais, mas voltaria. Aquele dia seriam muitos dias, repetidos por ela, vezes sem fim até …  até dar de caras consigo. Tinha a certeza que continuava por lá. Às vezes conseguia sentir-se, por um breve momento. Outras, num relance apanhava um movimento que parecia seu. Um dia, um dia voltaria a encontrar o fio que a levaria ao encontro de si. Um dia.