quarta-feira, 2 de dezembro de 2009




 O corpo de Maria Alice continuava ali, atirado para uma cama, olhos no vazio.Ao seu lado, numa cadeira, estava o rapaz que o salvara. Salvara o corpo, mas não a salvara a ela. Alice tinha saltado, de dentro de si,  para o abismo. Quando os seus pés resvalaram e ele a apanhou, já ela tinha partido, nas asas de uma gaivota que  por ali voava.
Nunca se tinha sentido tão liberta, tão livre, mas ao mesmo tempo tão perdida. Viu o rapaz a agarra-la, a abraça-la com força. Depois veio o vazio.
Vagou durante muito tempo, no meio de gente estranha e desconhecida, por terras brancas, de gente branca... e voltou a procurar-se. Estava naquilo que parecia ser um hospital. O marido ali, ao lado a chorar... E agora de novo o rapaz. Teve vontade de lhe passar os dedos pela face e de lhe agradecer. Em segundos, ele tinha feito mais, do que muita gente que a conhecia desde sempre tinha feito. Tinha-a agarrado. Tentou tocar-lhe, mas em vão. Não conseguia. Sem aquele corpo que jazia ali ao lado, nada feito.
Tinha-o observado em pormenor. Os cabelos, alinhados e penteados ao longo da cara, os olhos grandes e muito abertos, os lábios finos e bem desenhados, as mãos de dedos compridos.. Pareciam os de  uma pianista... Cada vez que olhava, dava outro passo que a distanciava ainda  mais daquela cama e daquele ser. Tentava encontrar algo que a puxasse de volta, mas nada.Talvez recordar-se de si, da sua vida, ajudasse.. Não adiantava .Era uma porta que não conseguia abrir. Não encontrava a chave... Tinha-a perdido algures, no meio daquele percurso.
Estava a ficar sem motivos, razões para andar por ali.
  Os médicos que passavam falavam do seu estado, mas nem isso lhe parecia interessar. Por isso se sentia à deriva, sem rumo.Não se sentia bem. Nada lhe dizia nada.
Lembrava-se da dor. Essa tinha passado, mas fora substituída por algo com que não contava. Dormência. Era isso mesmo. Dormência ou ausência de tudo.Pura e simplesmente não sentia. Era tudo muito confuso.
Pensando bem, de uma forma muito linear... O estar vivo é isso mesmo: sentir! O calor do Sol, alegria, tristeza, amor, ódio...dor... se ela não sentia, quereria isso dizer que deixara de existir? Mas por outro lado, a prova física da sua existência estava ali, no meio dos lençóis brancos. Não conseguia perceber.
Perdera o passado, o futuro, e mesmo o agora estava comprometido.
Pairava, misto sombra e espírito, intocável, e incorpórea.
Junto ao tecto, uma aranha tecia pacientemente a sua teia de fios brilhantes e transparentes. A luz do Sol projectava-se neles, reflectindo luzes de todas as cores, que se propagavam por todo o quarto, atingindo Alice.
 -Ela parece tão serena- pensou o rapaz - Não te deixes ir!!! Sei o que estás a passar. Já estive desse lado...
Tás muito bonita... Vá! Não sejas parva! Vive! Nem todos têm a mesma sorte. Tu tens uma outra oportunidade... Não a desperdices. Vive! Vive!!!É para isso que cá andamos.- E sem pensar, inclinou-se beijando-a ao de leve na face, enquanto lhe apertava a mão.- Força! Tinha de te dizer isto.
O rapaz levantou-se, de rompante, angustiado com as recordações que carregava consigo e que o tinham obrigado a ir ter com ela.
Ele queria que desta vez fosse a sério.
Pelas duas, tinha de a salvar.

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