segunda-feira, 28 de setembro de 2009



Tinha a cabeça encostada ao vidro do carro. Ao fundo via o vai e vem da esplanada.
Como sempre, ele não parava. Era incrível, como conseguia, sozinho despachar toda aquela gente! Não admirava que parecesse desajeitado… devia estar exausto! As pessoas podem ser tão aproveitadoras… aproveitam-se da necessidade dos outros. É que era todos os dias!! Desde manhãzinha…até ao final do dia… e ainda varria, arrumava as cadeiras, mesas, lavava a loiça...
Grande vaca, lá por ser a dona!... Não podia admitir outra pessoa? Mania de querer ganhar tudo de uma vez.
Quase que se sentia envergonhada…Quase, não. Sentia mesmo. O que tinha rido, no início. As coisas que tinha dito! Ela e os amigos… Mas depois… Afinal não era nada assim. Também! …
Não era nada assim, parecia ser o mote da vida dela… Se um dia fizessem um filme sobre ela… chamar-se-ia “ Não era nada assim”. Tinha a mania de se deixar guiar pelas primeiras impressões, e depois era isto. Uma amiga passava a vida a dizer-lhe que as iludencias aparudem… e mais a sério, que o que é hoje, amanhã pode já não o ser… ela ouvia, assinava em baixo, mas na hora H, eheheh… deixava-se levar sempre pelas primeiras impressões, pelos primeiros momentos. Era uma daquelas pessoas, que embora o negasse a pés juntos se fosse preciso, acreditava piamente no “ Amor à primeira vista”, e pronunciava frases do género de … “ bastam-me apenas três minutos, no máximo, para ver se me apaixono por alguém… “com um sorriso sonhador e idiota estampado no rosto. No fundo era uma romântica incorrigível, crédula, bem tratada pelo passar dos anos, que a tinham poupado a desvarios ou dissabores de maior nota…. Ou não seria este o seu discurso.
O rapaz da esplanada tinha mexido com ela. Ia contra tudo aquilo.
De início tinha-o achado ridículo, um disparate personificado… Aos poucos foi descobrindo … não sabia se era por os olhos dele se encontraram com os dela, se era o sorriso que teimava em soltar, se …sabia ela lá…. O que sabia é que todos os dias tinha de lá voltar, à esplanada… para olhar, para o encontrar.
Quando o Verão acabasse… como seria? Ainda não tinha tido sequer coragem de perguntar, se a esplanada continuaria a abrir, ou não… ou se aquele era apenas um emprego de Verão…
E quando tocava ele tocava? Ui… Parecia que o mundo tocava também e o acompanhava. As gaivotas dançavam, as ondas ondulavam. Tudo marcava o ritmo… Sempre. Enquanto ele tocava. Arrastava tudo. Parecia um Tsunami…
Exagero, credo! Se calhar, mal comparado…
Tsunami era ele! Eheheh… Era o que ele tinha feito com a vida dela. Tinha revolvido tudo, de alto abaixo, e o mais engraçado… que não tinha mesmo graça nenhuma, era nem lhe passar pela cabeça.
Tinha vergonha. Não dele, de ele ser um empregado de mesa, mas dela.Achava ridículos, os seus sentimentos. Não sabia como lidar com tudo aquilo. Era demasiado grande para ser solto, demasiado grande para compartilhar e demasiado grande para guardar. Demasiado.
Ela não era ela. Não se reconhecia. Se por um lado rejubilava, por outro definhava.
Onde tudo aquilo iria parar...
Como uma gata preguiçosa, espeguiçou-se, esticou musculo por musculo, arrancou-se a custo do carro. Cá fora já cheirava a Outono e uma brisa fresca temperava o ar.

sábado, 26 de setembro de 2009


Na vida de cada um de nós, mais tarde ou mais cedo, é possível assinalar um período mais conturbado, digno de figurar nos anais da história da família. O meu aconteceu aos quatro anos. Foi com quatro anos que escorropichei copo atrás de copo, abandonados à minha sorte, enquanto os adultos faziam as honras da casa e se despediam dos convivas e foi também por esta altura que provei caracóis, mas crus, apontando, de dedo em riste o pobre do meu primo João, verdadeiramente inocente e enjoado, como instigador deste meu acto e, foi ainda com quatro anos que tirei o nosso carro da garagem. Segundo rezam as crónicas, o meu pai, orgulhoso” da menina dos seus olhos”, ao mesmo tempo que me ensinava a papaguear os números, o abecedário, ensinava-me também o que era um travão de mão, as mudanças, onde ficavam as luzes, os sinais de trânsito e outras coisas, carregando-me no colo, enquanto conduzia. Eu escutava, mãos no volante, de olhos arregalados, calada, bebendo gota a gota, tudo o que ele me dizia. Numa tarde de Verão, após o regresso da praia, para obviar os inconvenientes de tratar de uma criança à mesa, fui a primeira a almoçar, ficando por isso livre para cirandar pelo jardim. Tenho uma vaga ideia de que fui ter com a Benvinda, a criada da minha tia Felisbela, que estava no tanque a lavar roupa. Nessa altura, as máquinas de lavar eram um devaneio dos mais criativos…Abri a porta do carro, estacionado na garagem e sentei-me a conversar com ela. Dona de uma paciência de Jó, Benvinda, adorava-me e aturava estoicamente todas as minhas diabruras e histórias mirabolantes, vestia e despia bonecas, e fazia vestidinhos de crochet para elas, de cores vivas. Era o alvo perfeito para eu esbanjar toda a minha sabedoria recém adquirida… Havia que instrui-la sobre as maravilhas da mecânica. Ela ia respondendo sem ouvir, absorta nos seus pensamentos, dizendo que sim e sorrindo de vez em quando. Foi aí que, segundo ela, me sentei ao volante e sem que ela soubesse dizer como, destravei o carro, que começou a rolar, devagar… Benvinda, num ápice, rompeu numa correria, casa adentro, aos gritos: Oh minha senhora! A menina vem aí! A menina vem aí com o carro! Todas as conversas se calaram, o pensamento era comum: a menina tem quatro anos. A menina vem aí?? Com o quê!? Correram todos para o jardim. Mas a menina, assustada com os gritos de pânico da pobre Benvinda, tinha devagar virado o volante para o muro da casa e encostado o carro. Tudo acabou com um valente ralhete e promessas de jamais voltar a repetir o sucedido. Escusado será dizer, que as minhas lições terminaram.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Domingo no paredão


Domingo.
O paredão fervilha.
Como formigas num carreiro,
Todos correm,
Todos passam,
Sempre, sempre, sem parar,
Pernas para que te quero,
Braços pelo ar,
Sempre, sempre,
A correr ou a caminhar…
São crianças, jovens e adultos, idosos…
Acompanhados, sozinhos,
Sempre, sempre sem parar…
Passa o domingo.
Chega a segunda…
O corpo dói…
Dói, dói, sem parar…
Mas domingo…
Domingo lá estarão…
Outra vez, e outra vez…
Sempre, sempre, sem parar.
Pelo paredão,
A correr ou a andar.
Obedientes, como formigas a marchar.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Dias de Sol e mel.


Com o mês de Setembro, começa pouco a pouco a azáfama do regresso à Escola. Os pátios, onde antes saltitavam melros, perseguidos aqui e ali por um gato mais afoito, vão sendo “conquistados” a contragosto tanto por alunos como por professores, já saudosos dos tempos áureos que em breve irão acabar.
No meu tempo não era assim. Começávamos férias em meados de Junho que se espraiavam até princípios de Outubro. A família deslocava-se em peso para as Azenhas do Mar. Kispos grossos e camisolões de lã faziam par com fatos de banho e t-shirts, arrumados com afinco dentro de grandes malas. O meu cão seguia sempre ao meu lado e aos pés da minha mãe ia a gaiola do canário. Como não enjoava, fazia muitas das vezes a viagem deitada no banco de trás, o que valeria aos meus pais, se estivéssemos nos dias de hoje, uma valente multa. Sentia-me sempre rejubilante. Para mim, as Azenhas significavam Liberdade. Mal lá chegava vestia “ o uniforme de trabalho” como lhe chamava o meu tio João, deixava os vestidos e sapatos de circunstância e passava aos calções e t-shirt desbotada. Com eles subia pinheiros, andava de bicicleta, corria, pulava, ficava peganhenta das “ caçadas “ aos pinhões, e regressava à noite ensanguentada da” apanha da amora”. De manhã, invariavelmente, íamos para a praia, depois das compras na praça. Tínhamos uma barraca alugada, durante todo o Verão, de lona grossa, riscada de amarelo e azul, que se revelava de extrema necessidade nos dias de cacimba. “ Ao meio dia, ou carrega ou alivia…” era um dos lemas da minha tia Felisbela, pródiga em provérbios. Seguindo o mote, lá rumávamos à praia, de camisolas grossas. Nós ficávamos a cabriolar pela areia, até o frio e a humidade triunfarem, levantarmos arraiais e seguirmos até novas paragens: o café restaurante “Casino”.Era aqui que muitos dos almoços e comemorações se faziam. Pertencia ao Sr. Ramos e ao Sr. Silvério, dois galegos, personificações vivas de Dão Quixote e Sancho Pança… pelo menos era assim que eu os via… Em frente existia um parque infantil com um escorrega, cavalinhos e baloiços… E que baloiços. A nossa maior ambição era andar cada vez mais e mais e mais depressa, até conseguir dar uma volta completa. Às vezes, quando chegava a casa, deixava-me cair em cima da cama, fechava os olhos e a sensação continuava lá … aquele vaivém saboroso, que embalava sonhos, risos e felicidade e em que nada poderia correr mal.
Perto existia a geladaria da “ Julinha, onde se vendiam uns gelados artesanais, segundo uma receita mantida no meio de grande secretismo e trazida de Itália. Eram doces e saborosos.
Do outro lado ficava a farmácia do Sr. Alves. Tinha mesinhas feitas por ele para todo o tipo de maleitas, mas a “piece de resistance “ era um bronzeador, à base de tintura de iodo e óleo de coco, vendido em garrafinhas de martini, tampado com uma rolha de cortiça. Tinha de ser colocado no tabelier do carro para derreter, antes de se usar. Era muito cobiçado e esgotava rapidamente. Ainda recordo o cheiro e a cor que deixava nas mãos. Era também o Sr. Alves que fazia questão de nos medir. No início do Verão pedia-nos para nos encostarmos a uma das paredes, cheias de riscos, onde estavam os nossos nomes. No final do Verão a cerimónia repetia-se, seguida de grandes elogios e felicitações, mesmo que o saldo não fosse assim tão animador.
E havia o cinema. O cinema da Praia das Maçãs, um pré-fabricado, com uma maquina que protestava durante todo o visionamento e umas cadeiras de pau, todas agarradas umas às outras e que chiavam cada vez que nos mexíamos. Eu gostava especialmente de ir ver os filmes de terror. Levava o dia a melgar o meu primo João, até que este se rendia, e ia comigo, às sessões da meia-noite, dormindo a sono solto, enquanto eu bebia “ As noivas de Dracula”, “Os Zombies atacam” e afins.
Com o Agosto vinha a época das festas populares, procissões e romarias. As ruas engalanavam-se de arcos e luzes. Vendiam-se algodão doce, ferraduras e bolos de erva-doce, farturas e pão com chouriço. Do recinto da festa, chegavam em grande algazarra, as vozes roufenhas dos cantores na berra desse ano, saídas das cassetes cada vez mais gastas dos carrinhos de choque e dos carrosséis. E o fogo-de-artifício, e o espectáculo dos “Asas de Portugal”que nos punha a todos deitados na praia, a olhar para o céu… E as garraiadas, com vitelas esqueléticas, a fugir espavoridas de adolescentes imberbes que tentavam a todo o custo provar a sua masculinidade às moçoilas belas e roliças da terra.
Agosto levava os pais de volta para Lisboa e deixava-nos entregues às mães. Saiam de manhã e regressavam à noite. Para o meu pai e o meu tio, a vinda era uma bênção. Abandonavam a capital com um calor tórrido.
- Passando Ranholas entramos no paraíso, nem vos passa pela cabeça a sorte que têm - dizia o meu pai, sorriso estampado no rosto, enquanto nós o olhávamos de cara fechada, sentados ao pé da lareira que estivera acesa todo o dia.
Foram dias plenos, cheios, vividos intensamente, saboreados gota a gota.
Dias de Sol e mel.