quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Dias de Sol e mel.


Com o mês de Setembro, começa pouco a pouco a azáfama do regresso à Escola. Os pátios, onde antes saltitavam melros, perseguidos aqui e ali por um gato mais afoito, vão sendo “conquistados” a contragosto tanto por alunos como por professores, já saudosos dos tempos áureos que em breve irão acabar.
No meu tempo não era assim. Começávamos férias em meados de Junho que se espraiavam até princípios de Outubro. A família deslocava-se em peso para as Azenhas do Mar. Kispos grossos e camisolões de lã faziam par com fatos de banho e t-shirts, arrumados com afinco dentro de grandes malas. O meu cão seguia sempre ao meu lado e aos pés da minha mãe ia a gaiola do canário. Como não enjoava, fazia muitas das vezes a viagem deitada no banco de trás, o que valeria aos meus pais, se estivéssemos nos dias de hoje, uma valente multa. Sentia-me sempre rejubilante. Para mim, as Azenhas significavam Liberdade. Mal lá chegava vestia “ o uniforme de trabalho” como lhe chamava o meu tio João, deixava os vestidos e sapatos de circunstância e passava aos calções e t-shirt desbotada. Com eles subia pinheiros, andava de bicicleta, corria, pulava, ficava peganhenta das “ caçadas “ aos pinhões, e regressava à noite ensanguentada da” apanha da amora”. De manhã, invariavelmente, íamos para a praia, depois das compras na praça. Tínhamos uma barraca alugada, durante todo o Verão, de lona grossa, riscada de amarelo e azul, que se revelava de extrema necessidade nos dias de cacimba. “ Ao meio dia, ou carrega ou alivia…” era um dos lemas da minha tia Felisbela, pródiga em provérbios. Seguindo o mote, lá rumávamos à praia, de camisolas grossas. Nós ficávamos a cabriolar pela areia, até o frio e a humidade triunfarem, levantarmos arraiais e seguirmos até novas paragens: o café restaurante “Casino”.Era aqui que muitos dos almoços e comemorações se faziam. Pertencia ao Sr. Ramos e ao Sr. Silvério, dois galegos, personificações vivas de Dão Quixote e Sancho Pança… pelo menos era assim que eu os via… Em frente existia um parque infantil com um escorrega, cavalinhos e baloiços… E que baloiços. A nossa maior ambição era andar cada vez mais e mais e mais depressa, até conseguir dar uma volta completa. Às vezes, quando chegava a casa, deixava-me cair em cima da cama, fechava os olhos e a sensação continuava lá … aquele vaivém saboroso, que embalava sonhos, risos e felicidade e em que nada poderia correr mal.
Perto existia a geladaria da “ Julinha, onde se vendiam uns gelados artesanais, segundo uma receita mantida no meio de grande secretismo e trazida de Itália. Eram doces e saborosos.
Do outro lado ficava a farmácia do Sr. Alves. Tinha mesinhas feitas por ele para todo o tipo de maleitas, mas a “piece de resistance “ era um bronzeador, à base de tintura de iodo e óleo de coco, vendido em garrafinhas de martini, tampado com uma rolha de cortiça. Tinha de ser colocado no tabelier do carro para derreter, antes de se usar. Era muito cobiçado e esgotava rapidamente. Ainda recordo o cheiro e a cor que deixava nas mãos. Era também o Sr. Alves que fazia questão de nos medir. No início do Verão pedia-nos para nos encostarmos a uma das paredes, cheias de riscos, onde estavam os nossos nomes. No final do Verão a cerimónia repetia-se, seguida de grandes elogios e felicitações, mesmo que o saldo não fosse assim tão animador.
E havia o cinema. O cinema da Praia das Maçãs, um pré-fabricado, com uma maquina que protestava durante todo o visionamento e umas cadeiras de pau, todas agarradas umas às outras e que chiavam cada vez que nos mexíamos. Eu gostava especialmente de ir ver os filmes de terror. Levava o dia a melgar o meu primo João, até que este se rendia, e ia comigo, às sessões da meia-noite, dormindo a sono solto, enquanto eu bebia “ As noivas de Dracula”, “Os Zombies atacam” e afins.
Com o Agosto vinha a época das festas populares, procissões e romarias. As ruas engalanavam-se de arcos e luzes. Vendiam-se algodão doce, ferraduras e bolos de erva-doce, farturas e pão com chouriço. Do recinto da festa, chegavam em grande algazarra, as vozes roufenhas dos cantores na berra desse ano, saídas das cassetes cada vez mais gastas dos carrinhos de choque e dos carrosséis. E o fogo-de-artifício, e o espectáculo dos “Asas de Portugal”que nos punha a todos deitados na praia, a olhar para o céu… E as garraiadas, com vitelas esqueléticas, a fugir espavoridas de adolescentes imberbes que tentavam a todo o custo provar a sua masculinidade às moçoilas belas e roliças da terra.
Agosto levava os pais de volta para Lisboa e deixava-nos entregues às mães. Saiam de manhã e regressavam à noite. Para o meu pai e o meu tio, a vinda era uma bênção. Abandonavam a capital com um calor tórrido.
- Passando Ranholas entramos no paraíso, nem vos passa pela cabeça a sorte que têm - dizia o meu pai, sorriso estampado no rosto, enquanto nós o olhávamos de cara fechada, sentados ao pé da lareira que estivera acesa todo o dia.
Foram dias plenos, cheios, vividos intensamente, saboreados gota a gota.
Dias de Sol e mel.

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