quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Milagre


Todos pareciam felizes.Todos por quem passava, desfilavam,bandeiras hasteadas, qual sorriso dependurado, orgulhosamente. Sozinhos, acompanhados, de mão dada ou enlaçados, em câmara lenta, devagar, apressados, a correr. Imperturbáveis. Seguiam o seu caminho, seguros de si, da sua felicidade e o mundo parecia pequeno demais para os conter.
Pobres deles. A felicidade pode ser tão efémera…
Apenas vemos aquilo que os outros nos querem mostrar, e mesmo assim, ainda escolhemos aquilo que queremos ver, o que melhor nos serve.
Era o que tinha feito. Anos e anos a fio. Começara por uma simpatia mutua, uma paixoneta e acabara  num estado de graça. A paixão é isso mesmo. Um estado de graça, de quase idolatração.O mundo mudou de eixo e passou a girar em torno dele. Para ele e por ele existia.
Até aquele dia,  em que sentiu um soco forte na boca do estômago e o chão desapareceu debaixo dos seus pés.
Vagueou, perdida, sem rumo nem sentido. Tentara  levantar-se… mas o golpe tinha sido demasiado rude e violento. Voltava sempre ao chão. Uma vez, e outra, e outra … e mais outra. Cada vez que se erguia recebia novo golpe, mais rude e certeiro do que o anterior.
Por isso, estava agora  ali, a contemplar o mar do Guincho, e a pensar se conseguiria ainda usar a vida que lhe restara.
A taça, lentamente, tinha-se esvaziado.
Não pensava em vingança, para isso era preciso sentir… . Ela não sentia. Estava dormente. Flutuava num estado quase letárgico, à medida que tudo se ia desenrolando à sua volta.
As gaivotas pairavam por cima dela. Conseguia vê-las a passar, rápidas, livres. Lá em baixo, o mar estava bravo, de um azul-escuro esverdeado, ladeado pelo branco da espuma das ondas que se lançavam à força toda contra a arriba. O vento forte fustigava-lhe as faces, criando à sua volta um turbilhão de cabelos, que se agitava a seu belo prazer. Abriu os braços e fechou os olhos com força, concentrando-se. Numa prece derradeira implorou aos céus, mar e vento, a todos as forças que a ladeavam:
- Deixem-me sentir… sentir …
Pedia um milagre.
Deixou-se ficar ainda mais uns instantes assim.
Baixou os braços, abriu os olhos, e sem um pensamento saltou.

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