quinta-feira, 29 de outubro de 2009

De camarote






- Maria Alice… Maria Alice, Maria Alice, Maria Alice!
 Como foste capaz?! Deste cabo da minha vida! O que vou fazer agora? Estou desgraçado! Essa é que é essa! - Desesperado, não conseguiu segurar-se mais e rompeu num pranto incontrolado, cabeça entre as mãos, estremecendo por entre os soluços.Ao seu lado estava uma cama branca, fria, de hospital e dentro dela, estava Alice. Estava…
- O caraças é que estava!Sem dar conta do que fazia, levantou-se, agarrou-a pelos ombros e abanou-a.
 Acorda, mulher! Queres dar comigo em doido, é? Estás-te a vingar? Fala!
Tás a assistir de camarote.
Alice não se mexeu. Os Olhos grandes, enormes, de um azul metálico, continuavam abertos. Pareciam mais frios do que o costume, fixos num ponto qualquer. Ela não estava ali. Não adiantava.
- E agora? O que é que vou fazer? O que vou fazer contigo? Responde! Tinhas mesmo de estragar tudo…
 Raça de mulher… Raça de mulher….
Quando eu tinha tudo preparado… ia de férias amanhã…
 Ela não me vai perdoar! Não me vai perdoar… não vai! Ia ser tão bom…
-Oh…Maria Alice! Tinha de ser agora, não era?!
 Nem para te matares de uma vez serves, mulher… Deus me perdoe…
Tinhas ido para casa da tua amiga, como tinhas dito… eu ia de férias, voltava e continuava tudo na mesma. Nunca disse que saía, pois não? Tinhas-me lá… Fazias-me aquelas porcarias, lá dos teus cozinhados, eu sentava-me e comia, íamos a casa dos meus pais… dos teus… querias mais o quê?
Porra! Porra! Porra, mulher!
A visita estava a acabar. A enfermeira apareceu a avisar que tinham apenas mais cinco minutos. Olhou para o casal e não pode deixar de sentir pena daquele homem. Estava completamente desesperado. Há dois dias que o via ali, sentado ao lado dela, a chorar, em pranto, com medo de não a voltar a ter. Há muito tempo que não via uma dedicação daquelas. Deviam de se amar muito. Pela sua mente passou um clarão de inveja. Mesmo deitada naquela cama, com aquele ar ausente, aquela mulher tinha aquilo que ela mais queria e que estava tão longe de alcançar: alguém que verdadeiramente a amasse. – Só Deus sabe porque teria ela feito uma coisa daquelas… É daquelas coisas… As pessoas nunca estão contentes com aquilo que o destino lhes dá. Estava ali aquele homem, feito um farrapo, aos pés da cama dela e ela tinha deitado tudo isso fora…
- Então… Tenha calma… Vai ver que tudo se compõe – disse ela, sorrindo, ao mesmo tempo que apertava a mão dele, numa tentativa de o reconfortar.
- Não vai, não vai… Vai lá agora.. Ai a minha vida… Está tudo estragado.
- Vamos, vamos… Vamos lá a animar. O senhor tem de ter calma! E descansar. Como vai depois ajudar a sua mulher? Cansado dessa maneira? Acha que ela gostaria de o ver assim?
- Pois.. É verdade… Ela não o podia ver assim! Ia achar que ele era um banana, um frouxo. Tinha de se recompor, ganhar forças para a enfrentar. Não ia ser mole! Dizer que as férias já eram… Ia cair o Carmo e a Trindade!
- O pior já passou – disse a enfermeira.
- O pior? O pior ainda está para vir…

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