segunda-feira, 15 de junho de 2009
Caminhava pelas ruas sem pensar, olhando, as montras … Casualmente atraída por um qualquer trapo, parava, entrava, experimentava, seduzia a vendedora com a sua conversa quente e voltava a sair. O ar frio da manhã batia-lhe no rosto mas sabia-lhe bem. Inspirou fundo, permitindo que este lhe enchesse os pulmões e foi invadida por um cheiro conhecido, mas indistinto para as gentes automatizadas que passavam em velocidade de cruzeiro.
Uma mulher, a custo, arrastava atrás de si uma criança meia adormecida, lutando para que esta acompanhasse os seus passos apressados e já cansados. Tinha-a acordado com carinho, vestido, arranjado, dado o pequeno almoço, arrumado os lanches (para a manhã e para a tarde), tinha alinhavado o jantar, tratado de estender uma maquina de roupa – que isto de ter crianças pequenas é um ror de roupa pra lavar todos os dias – apanhado a que tinha estendido durante a noite, enquanto fazia o jantar e dava banho à menina, - sempre de olho nela, com os miúdos, nunca se sabe…- tinha tomado banho, tinha-se vestido, soltado um “ até logo” ao marido que só então se começava a levantar e saído em disparada para a rua, já atrasada. Todos os dias a mesma correria, dia após dia.
Mais à frente um homem acocorara-se no chão, em cima de uns cartões, sapatos escondidos por debaixo de uns jornais, pés nus e roxos, mão estendida para os que passavam. Novos ou velhos, mulheres, homens ou crianças, todos se descalçavam. Era como um elo que os unia, um estatuto; descalçavam-se e sentavam-se em cima de tiras de cartão. Vinham de todos os lados, mais frequentemente de países do leste. Sempre a impressionara os pés descalços, talvez por os associar ao frio, ao desconforto, conotando-os com a desgraça, o infortúnio em que se encontram aqueles que têm de recorrer à caridade dos outros para sobreviverem, mas ultimamente achava que os pés descalços, mais do que outra coisa, eram um artifício, bem engendrado para atrair a caridade e bondade alheias. E isso fazia com que, sempre que visse uns pés descalços não resistisse a lançar-lhes um olhar de desdém, acelerando o passo, enjoada. Um dia, acabou por confirmar que estava certa, mas não da forma que pensava: alguém lhe contou que aqueles pobres desgraçados eram todos os dias, de manhã cedo, descarregados de carrinhas, como se fossem gado, e deixados à porta de supermercados, lojas, para “pedir” e recolhidos, no final do dia, subtraindo-lhes todo o dinheiro que tinham ganho e também alguma réstia de dignidade que ainda ousassem conservar. Eram estes os seus pensamentos, enquanto se deixava ir, rua abaixo, sem rumo ou direcção. Continuou a vaguear, pensando mais uma vez no passado, nas vezes que por ali já tinha andado, nos passos que já tinha dado e que poderiam muito bem ter sido também os dele. Quem sabe, não teriam caminhado, um em direcção ao outro, apressados, cabelos ao vento, mãos nos bolsos, raspado ao de leve no ombro um do outro, murmurado até talvez uma desculpa, e seguido indiferentes, perdendo-se no meio de todos os outros rostos, que passam todos os dias e dos quais não se guarda qualquer lembrança, afastando-se, até se tornarem pequenos pontos, sem dimensão…
Ultimamente o passado infiltrava-se nos seus pensamentos de uma forma quase contínua. Pé ante pé, insinuava-se, enroscava-se, colando-se a novas situações, sensações, experiências.
Voltou a inspirar. E continuou a andar, no meio de todos os outros, sentindo aquele cheiro conhecido, forte, carregado,mas ao mesmo tempo reconfortante da cidade.
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